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quinta-feira, 9 de fevereiro de 2017

O legado de cada um


A vida passa tão rapidamente que não nos damos conta de coisas boas que poderíamos deixar gravadas em nossa história. Nada revolucionário, ou midiático, mas ações cotidianas que serviriam de inspiração aos jovens ou exemplo a ser citado pelos mais velhos. Na maioria das vezes, nos acomodamos em algum ilusório conforto material, ou nos impomos a um ritmo alucinado que engole o tempo, em nome da luta pela sobrevivência. Atitudes que embrutecem o espírito, envolvidas na indiferença que, fatalmente nos jogarão a um vácuo existencial terrível.

Tantas portas para abrir, mas as chaves, sempre nas mãos dos mais rápidos, nos levam a essa disputa insana pelo que imaginamos ser a realização pessoal. E não adianta rezar, ajoelhar pedindo bênçãos e ajuda aos desvalidos se logo em seguida voltamos a nos encerrar em projetos alienados ao entorno social e íntimo. Tantas vezes recriminamos, sofremos com as vilezas cotidianas, mas permanecemos acomodados e atentos aos relatos que julgamos importantes para nossas fantasiosas bibliografias.

Infelizmente não é só isso. É preciso mais para se atingir essa tal realização. Na semana passada li no Facebook de minha prima Lísia, formanda em Psicologia, onde lembrava que, logo no primeiro semestre na faculdade, uma de suas professoras solicitou que todos escrevessem uma carta endereçada a eles próprios sobre qual o legado que gostariam de deixar às pessoas ao cursar Psicologia. A carta foi lacrada e devolvida apenas no último semestre do curso.

Ela confessou que gostaria de “desaprender” algumas coisas e dar espaço a uma forma de viver mais livre e produtiva. Em outras palavras, fazer da profissão uma possibilidade concreta de ajudar aos outros, objetivo que se alcança com o estudo. “Gostaria de saber desapegar do meu eu e poder olhar para além dos meus limites e da minha realidade para que outros tenham a chance de viver, amar e aprender o quanto antes”.

Assegurou, antes mesmo de um contato mais efetivo com a psicologia, que seu legado deveria surgir do esforço em conhecer não apenas as verdades que trazia consigo mas, com respeito, buscar o entendimento da realidade alheia, o que se atinge com chances iguais para todos de um tratamento psíquico, “voltado ao melhor em saúde mental para um crescimento equilibrado, focado na essência do bem, para o desenvolvimento da humanidade”.

Com certeza, o verdadeiro legado de qualquer profissional, está na capacidade de levar qualidade de vida aos que necessitam de ajuda. Realização pessoal não é apenas retorno financeiro, mas, principalmente, aquilo que se atingiu muito além dos limites materiais e transformaram, positivamente, situações de conflito e dor. O dinheiro, se utilizado frivolamente, apenas cobre de adornos e paparicos que, um dia, serão arquivos mortos de projetos incompletos.

“Espero fazer jus a minha carta”, concluiu. Pelo que li e, diante da atitude apaixonada que se releva em artigos compartilhados nas redes sociais, pelo empenho na conclusão do curso, tudo está muito bem encaminhado na trilha de uma profissional que busca a felicidade na realização alheia. Que maneira bonita e completa de se deixar um legado. Quem sabe, outros não se interessem pelo “desaprender” desta cultura da inércia, por uma existência nova, repleta de humanidade que tanta falta faz na atualidade.

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2017

Delírio de verão

Lá no fundo, bem ao fundo, alguém acenava. Uma mão solta no ar, quase sem corpo, desfocada contra a luz do sol. A semana começara difícil. Pensou em ligar para o marido. Três dias distante. Três dias sem trocar uma ideia, sem carinho. Quem a observasse naquele momento pensaria que rezava, em voz baixa. Olhar sério, compenetrado na calçada à beira-mar no centro de Florianópolis. Mas era a luminosidade que reduzia a definição da vista já cansada. Sinal da idade e da teimosia em não consultar um oftalmologista. Virou-se de costas e retomou a caminhada.

Em plena crise, era um bom momento nas constantes viagens a trabalho que lhe causavam enjoo. Pior, passaria o final de semana sozinha. Mas alguns clientes insistiram para uma reunião no sábado ao meio-dia. “Esses caras não têm família?” Mas ela ainda era a renda mais alta em casa. Os filhos já adultos estavam independentes, mas o esposo remava contra a maré.

Pequeno empresário no Brasil é escravo de muitos patrões e vítima da sede por impostos e das instabilidades de mercado. Às vezes desconfiava que ele – talvez cansado dessa diferença – buscasse casos extraconjugais para “sentir-se mais macho, já que no salário perdia”, sem dar-se conta do preconceito que alimentava.

Seria fácil. Sempre em viagens de negócios em função da atividade que exercia, atendia um grande público feminino. Era marceneiro, e dos bons! Produzia peças para artesanato. Mas não, não cometeria tal desatino ao lembrar a italiana “muito sem graça” que encomendara entalhes para a próxima Páscoa.

“Coisa simples”, dissera o marido, não fosse a grande quantidade de outras encomendas, para tantas outras clientes. A italiana era a favorita dele. Vá lá, ela encomendava muito. Mas detestava quando chegava com sotaque forte e gestos largos para elogiar, repetidas vezes, as virtudes do esposo. “Ai tem…” pensava.

Longe de casa, em Florianópolis, em um hotel lotado, cercada de turistas querendo festa e executivos bem resolvidos financeiramente, todos cheios de disposição para uma aventura instantânea, e “tu ainda preocupada com o marido que vive uma situação muito diferente”, recriminou-se. O pobre deveria estar, naquele exato momento no atelier, trabalhando, bem escondido em uma rua simples, sem charme, sem paisagem bonita, na distante zona norte de Porto Alegre.

Quem sabe não seria a vez dela acrescentar emoção à rotina de sua vida? Aquele diretor da empresa concorrente lhe sugerira um vinho. Sem compromisso. Quebrar o gelo, trocar ideias de trabalho. “Sei…” Em casa, o maridão no trabalho e ela, solitária, carente, insatisfeita. Arrependeu-se na hora. O sol era só uma mancha no céu bem limpo e aquela visão distante – a da mão que acenava – ganhava forma, embora ainda imprecisa.

“Para de pensar bobagens, guria”. Ligou para o marido. Conferir é prevenir, sentenciou. Um funcionário atendeu. O marido fora entregar encomendas. Uma delas para a tal artesã italiana. O sangue ferveu de tal maneira que a paisagem paradisíaca da beira-mar de Floripa, ganhou tons vermelhos de ciúme.

Então era isso: uma entrega especial. E para ela, nem um telefonema de boa noite? Homens! “E eu boba, insisti para ele fazer dieta. Agora perdeu uns quilinhos e já se sente um galã!” Ao mesmo tempo, a imagem desfocada que antes parecia lhe acenar, ganhava forma. Vinha em sua direção. Era um homem. E se fosse bonito, adeus boa moça!

Quando a imagem ganhou definição, a poucos metros de seus incrédulos olhos, um novo choque: com um sorriso imenso e familiar, camiseta, jeans muito surrado e a barba por fazer – ali estava ele. Não o provável amante, mas o marido a lhe fazer uma surpresa. A primeira em tantos anos e com certeza, na hora certa.

Depois do abraço e beijo cheio de culpa e saudade, soube que ele decidira por uma folga “Vim dar uma incerta”, brincou. Só não contou que a passagem fora adquirida graças ao pagamento antecipado de uma cliente. Isso mesmo, a italiana. Ela não entenderia.