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terça-feira, 13 de março de 2018

Incidente em Praga


Ao abrir a porta, a cena lhe pareceu familiar: uma silhueta de mulher atenta a um livro, emoldurada pela luz quente do entardecer que cedia espaço ao brilho do néon, abaixo de raras nuvens no céu de primavera. Lembrou a viagem a Paris no ano anterior. A Europa deixava de ser apenas uma coleção de cartões postais enviados por amigos extasiados, ou recortes de revistas, com dicas de lugares para se conhecer um dia. Roma, Londres, Madri, Lisboa e uma série de pequenas vilas perdidas em lugares que se tornavam ainda mais bonitos ao lado da mulher amada. Em um imenso pote de vidro, haviam guardado rolhas de vinho e espumantes de todos os cantos. Ali repousava o espírito feliz de um passeio inesquecível. Em todos os sentidos.

Aproximou-se da poltrona e a diarista assustada, desculpou-se por folhear o livro que inundava a mesa de imagens. Pagou a moça que levou consigo o asfixiante rastro de perfume e alvejante. Mas a mulher amada não estava mais lá nem em fotos, Tivera o trabalho de guardar para si, apenas as paisagens visitadas. Especialmente Praga, a linda cidade tcheca que encerrara a excursão. Com a grana já curta, permaneceram no “Ai 4 Angeli”, um flat restaurado, bonito como tudo naquela cidade acolhedora.

O gerente falava português! E foi assim - às margens do rio Moldávia -, na cidade das cem cúpulas, uma das mais lindas da Europa que juraram um amor tão harmonioso e duradouro quanto aquela romântica metrópole com suas ruelas de traçado irregular, a revelar belezas em cada curva e a surpreender com seu povo simpático e culto. Por ser a terra de Antonin Dvorak, o famoso compositor erudito, haviam combinado assistir a um concerto no Teatro Nacional. Mas naquela tarde, ela sentiu-se mal. Estava muito enjoada. Cansada da imensa caminhada.

Acabou convencendo-o a ir, mesmo assim, ao concerto da Sinfonia do Novo Mundo, escrita no período em que o Dvorak vivera em Nova Iorque. Era uma oportunidade única. Quando voltariam à Praga? E somente por isso aceitou deixa-la a sós. Antes do último movimento sinfônico, a preocupação com a amada, o fez deixar o teatro. Correu de volta ao flat.

Ao entrar no quarto, ao contrário da mulher abatida e nauseada, deparou-se com um cenário kafkaniano! Sim, Praga é a cidade do atormentado escritor Franz Kafka. Na imensa cama, a mulher amada sofria uma terrível metamorfose de anjo em voluptuosa barata a rastejar em busca de roupas e desculpas sensatas.Qual a lógica para um momento assim?  

Retornaram em aviões distintos e o casamento que estava programado para o final do ano, foi cancelado em vários idiomas. Ouvi-la - mais tarde - justificar que a euforia, a beleza do passeio, o clima sensual da viagem a levaram a cometer tal desatino, apenas o fazia sofrer ainda mais. "Foi só uma aventura. Eu te amo!" jurou. Só?

O porteiro, um húngaro bonachão procurou consolá-lo: “Aconteceu aqui, longe de tua casa. Ninguém vai saber, se você não contar". Mas qual a vantagem de descobrir – em solo estrangeiro - que a namorada não tinha escrúpulos? E ainda perdera o final do concerto! Assim, enquanto folheava o livro, decidiu voltar a Praga. Ainda está em dívidas quanto a data. A única certeza é de que, desta vez, estará só.

quarta-feira, 13 de setembro de 2017

Romantismo

Meu bem entenda, nosso problema é semântico.
Na verdade, eu não sou aquilo que idealizas.
O par perfeito, um ser etéreo, romântico.
Desista de mim se é disso que precisas.


À noite me encontrarás abraçado a lua.
Ou entre estrelas a medir o infinito...
Pobre tolo, dirás antes que meu verso conclua.


Imagina! Mensurar o imensurável!
Mas não será tua, a alma romântica?
Enquanto eu, patético, em esforço admirável
Tento empiricamente compreender física quântica.


Beijar é química pura. É a mistura homogênea de sais
Beijar eriça, tira um corpo da inércia!
Viu? Voltamos à física, apesar dos suspiros e dos ais.
Confundir com romance - me perdoe a rima - é solércia 

quarta-feira, 16 de agosto de 2017

Marido dez porcento

Cansada do marido farrista, a indignada esposa o expulsou de casa. Não bastava a crise que lhe roubava clientes na loja e ainda tinha que aturar as escapadas conjugais. As amigas a recriminaram. Ele era trabalhador, simpático e boa pinta, embora volta e meia sumisse. Era um carteado em lugar ermo, pescarias em açudes de sereias e um celular repleto de números e ligações estranhas em horários incômodos.

Na meia idade, filhos criados, não precisava aturar um gato fujão. O único felino naquele seu espaço teria quatro patas peludas.Referia-se a Charles, um siamês de personalidade forte, por coincidência, presente do marido que, aliás, não se conformou com a expulsão. Queria a milésima chance. Mas resistiu bravamente ao assédio de flores e ligações chorosas. Ela jurou que também iria cair na noite, com as amigas. 

Mas bastava ouvir o refrão "...A terceira música nem acabou. Eu já to lembrando da gente fazendo amor. Celular na mão, mas ele não ta tocando..." e os dez porcento aumentavam na conta da saudade. No meio de tudo isso, até o siamês sumiu. Chovia muito, ventava demais e o gato não retornou como em outras vezes. Mais um macho a lhe decepcionar. Charles, pelo menos, era solteiro e independente, como todo bom siamês, consolou-se. Uma semana depois, apareceu o marido confessando o “seqüestro” do gato. 

Só o devolveria se o aceitasse de volta. Jurava ter amadurecido. Argumentou que era igual aos gatos que gostam de passar a noite na rua, e sempre retornam querendo carinho. Ou seja, se as mulheres amam os bichanos, devem compreender também os homens, que têm as mesmas características. A infeliz comparação provocou gargalhadas na esposa. 

O bom humor, mesmo nas horas difíceis, era o que mais a agradava nele. A noite tinha sido pavorosa. Chuva e vento, os bares vazios de quem lhe atraísse. Também sentia falta do "cretino sem-vergonha". Abriu a porta e entraram felizes, o homem e o bichano.  Mas alertou, com olhos de gata arisca:" Só castração para acalmar um gato fujão e virar um dócil amiguinho. Então, o mesmo vale aos homens fujões."

 "Não brinca assim...", gemeu o marido com ar sofrido. Ela falava sério. No dia seguinte, o bichano foi castrado. Acabaram-se as noitadas de cio. O outro gato, impactado, acalmou-se. Teve "castrados" o celular, que ganhou um novo número, e, pior de tudo, senha compartilhada. As festas, ou pescarias, ela acompanha. Ou ficam em casa assistindo filmes. Não sei se um marido fujão tem cura, mas por enquanto ela economiza os 10 porcento. 

quarta-feira, 12 de julho de 2017

Democratas sonâmbulos

Sintonizar o rádio, ajustar a antena no melhor sinal digital é como abrir espaço para a pior em áudio e imagem. Não temos mais noticiários, temos séries diárias, com velhos e novos personagens em roteiros mal escritos, despidos de verdade. Quem de nós pensou que seria assim? Tanta renúncia, tanta voz perdida em discursos onde apenas permaneceram os murros aos céus. Hoje cada uma daquelas mãos fechadas desce para nos atingir na esperança. Não tenho mais bandeiras. Não me animo a dizer que um dia votei nesse ou naquele, porque me envergonha o voto que dei. Eu tenho uma vergonha alheia dos que defendem bandidos. O que é isso, companheiros?

Um certo romantismo revolucionário, como bem observa Fernando Gabeira em “Democracia Tropical – Caderno de um aprendiz”, torna belo, mascara os desvios criminosos de quem se admira. Eu que não tenho amigos para me emprestar um sítio, ou milhares de dólares para o custeio de advogados, paguei por meus enganos com juros e uma correção monetária e moral abusiva. Mas durmo em paz com minha consciência.

Em minha inocência olhava para as regiões carentes convencido de que lhes poderíamos levar cultura, educação, trabalho e amor próprio. Mas ajudamos aqueles a quem elegemos a fechar o círculo e, no inverso do esperado a repetir, de terno e gravata, o sistema brutal e individualista dos guetos.

Esse sistema corrompido ainda permitiu a formação de grupos bem arregimentados que se infiltravam em meio aos que nada tinham para perder e os educavam na arte do ódio, em ocupações em nome de causas sociais. Enquanto isso, os parlamentos mudos, a trocar votos por ouro, joias e contas no exterior.

Hoje sou vizinho de gente sem fé, sem disposição para nada que não venha de mão beijada, ou na força bruta, afinal “não dá nada”. E se me tirarem a vida por um celular velho, amanhã terá um mais na mão de um guri assustado. Se for preciso, morrerá também. Não ocupamos quem estava desocupado e eles se ocupam de nossa energia.

Cada partido, cada movimento, cada ação individual ou coletiva me parece estar contaminada com um vazio de propostas, de sinceridade. A imoralidade do Planalto contaminou a nação e hoje nos dividimos em siglas, em cotas, em codinomes. Somos filhos do insólito. A política virou uma armadilha.

A nossa missão, o nosso dever é desarmar essa armadilha, reunir as centelhas de indignação que ainda sobrevivem ali em seu espírito de cidadão e juntos formar novas lideranças. Eu falo aos que perderam familiares na guerra do crime, aos que perderam o direito a uma aposentadoria digna ou aqueles que jogaram fora a bandeira de seu partido. A culpa não está na ideologia, mas em quem a corrompe.

A novela em capítulos da Operação Lava Jato, só terá um final feliz, aquele que esperamos, se nos livrarmos daqueles que lucram com a nossa infame alienação, a nossa incentivada ignorância e essa estúpida convicção de que se der tudo certo para mim, os outros que se lixem. Os outros, com certeza, são os que nos lixam. Acordemos pois, brasileiros! Eu cansei desse sonambulismo.

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2017

O legado de cada um


A vida passa tão rapidamente que não nos damos conta de coisas boas que poderíamos deixar gravadas em nossa história. Nada revolucionário, ou midiático, mas ações cotidianas que serviriam de inspiração aos jovens ou exemplo a ser citado pelos mais velhos. Na maioria das vezes, nos acomodamos em algum ilusório conforto material, ou nos impomos a um ritmo alucinado que engole o tempo, em nome da luta pela sobrevivência. Atitudes que embrutecem o espírito, envolvidas na indiferença que, fatalmente nos jogarão a um vácuo existencial terrível.

Tantas portas para abrir, mas as chaves, sempre nas mãos dos mais rápidos, nos levam a essa disputa insana pelo que imaginamos ser a realização pessoal. E não adianta rezar, ajoelhar pedindo bênçãos e ajuda aos desvalidos se logo em seguida voltamos a nos encerrar em projetos alienados ao entorno social e íntimo. Tantas vezes recriminamos, sofremos com as vilezas cotidianas, mas permanecemos acomodados e atentos aos relatos que julgamos importantes para nossas fantasiosas bibliografias.

Infelizmente não é só isso. É preciso mais para se atingir essa tal realização. Na semana passada li no Facebook de minha prima Lísia, formanda em Psicologia, onde lembrava que, logo no primeiro semestre na faculdade, uma de suas professoras solicitou que todos escrevessem uma carta endereçada a eles próprios sobre qual o legado que gostariam de deixar às pessoas ao cursar Psicologia. A carta foi lacrada e devolvida apenas no último semestre do curso.

Ela confessou que gostaria de “desaprender” algumas coisas e dar espaço a uma forma de viver mais livre e produtiva. Em outras palavras, fazer da profissão uma possibilidade concreta de ajudar aos outros, objetivo que se alcança com o estudo. “Gostaria de saber desapegar do meu eu e poder olhar para além dos meus limites e da minha realidade para que outros tenham a chance de viver, amar e aprender o quanto antes”.

Assegurou, antes mesmo de um contato mais efetivo com a psicologia, que seu legado deveria surgir do esforço em conhecer não apenas as verdades que trazia consigo mas, com respeito, buscar o entendimento da realidade alheia, o que se atinge com chances iguais para todos de um tratamento psíquico, “voltado ao melhor em saúde mental para um crescimento equilibrado, focado na essência do bem, para o desenvolvimento da humanidade”.

Com certeza, o verdadeiro legado de qualquer profissional, está na capacidade de levar qualidade de vida aos que necessitam de ajuda. Realização pessoal não é apenas retorno financeiro, mas, principalmente, aquilo que se atingiu muito além dos limites materiais e transformaram, positivamente, situações de conflito e dor. O dinheiro, se utilizado frivolamente, apenas cobre de adornos e paparicos que, um dia, serão arquivos mortos de projetos incompletos.

“Espero fazer jus a minha carta”, concluiu. Pelo que li e, diante da atitude apaixonada que se releva em artigos compartilhados nas redes sociais, pelo empenho na conclusão do curso, tudo está muito bem encaminhado na trilha de uma profissional que busca a felicidade na realização alheia. Que maneira bonita e completa de se deixar um legado. Quem sabe, outros não se interessem pelo “desaprender” desta cultura da inércia, por uma existência nova, repleta de humanidade que tanta falta faz na atualidade.

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2017

Delírio de verão

Lá no fundo, bem ao fundo, alguém acenava. Uma mão solta no ar, quase sem corpo, desfocada contra a luz do sol. A semana começara difícil. Pensou em ligar para o marido. Três dias distante. Três dias sem trocar uma ideia, sem carinho. Quem a observasse naquele momento pensaria que rezava, em voz baixa. Olhar sério, compenetrado na calçada à beira-mar no centro de Florianópolis. Mas era a luminosidade que reduzia a definição da vista já cansada. Sinal da idade e da teimosia em não consultar um oftalmologista. Virou-se de costas e retomou a caminhada.

Em plena crise, era um bom momento nas constantes viagens a trabalho que lhe causavam enjoo. Pior, passaria o final de semana sozinha. Mas alguns clientes insistiram para uma reunião no sábado ao meio-dia. “Esses caras não têm família?” Mas ela ainda era a renda mais alta em casa. Os filhos já adultos estavam independentes, mas o esposo remava contra a maré.

Pequeno empresário no Brasil é escravo de muitos patrões e vítima da sede por impostos e das instabilidades de mercado. Às vezes desconfiava que ele – talvez cansado dessa diferença – buscasse casos extraconjugais para “sentir-se mais macho, já que no salário perdia”, sem dar-se conta do preconceito que alimentava.

Seria fácil. Sempre em viagens de negócios em função da atividade que exercia, atendia um grande público feminino. Era marceneiro, e dos bons! Produzia peças para artesanato. Mas não, não cometeria tal desatino ao lembrar a italiana “muito sem graça” que encomendara entalhes para a próxima Páscoa.

“Coisa simples”, dissera o marido, não fosse a grande quantidade de outras encomendas, para tantas outras clientes. A italiana era a favorita dele. Vá lá, ela encomendava muito. Mas detestava quando chegava com sotaque forte e gestos largos para elogiar, repetidas vezes, as virtudes do esposo. “Ai tem…” pensava.

Longe de casa, em Florianópolis, em um hotel lotado, cercada de turistas querendo festa e executivos bem resolvidos financeiramente, todos cheios de disposição para uma aventura instantânea, e “tu ainda preocupada com o marido que vive uma situação muito diferente”, recriminou-se. O pobre deveria estar, naquele exato momento no atelier, trabalhando, bem escondido em uma rua simples, sem charme, sem paisagem bonita, na distante zona norte de Porto Alegre.

Quem sabe não seria a vez dela acrescentar emoção à rotina de sua vida? Aquele diretor da empresa concorrente lhe sugerira um vinho. Sem compromisso. Quebrar o gelo, trocar ideias de trabalho. “Sei…” Em casa, o maridão no trabalho e ela, solitária, carente, insatisfeita. Arrependeu-se na hora. O sol era só uma mancha no céu bem limpo e aquela visão distante – a da mão que acenava – ganhava forma, embora ainda imprecisa.

“Para de pensar bobagens, guria”. Ligou para o marido. Conferir é prevenir, sentenciou. Um funcionário atendeu. O marido fora entregar encomendas. Uma delas para a tal artesã italiana. O sangue ferveu de tal maneira que a paisagem paradisíaca da beira-mar de Floripa, ganhou tons vermelhos de ciúme.

Então era isso: uma entrega especial. E para ela, nem um telefonema de boa noite? Homens! “E eu boba, insisti para ele fazer dieta. Agora perdeu uns quilinhos e já se sente um galã!” Ao mesmo tempo, a imagem desfocada que antes parecia lhe acenar, ganhava forma. Vinha em sua direção. Era um homem. E se fosse bonito, adeus boa moça!

Quando a imagem ganhou definição, a poucos metros de seus incrédulos olhos, um novo choque: com um sorriso imenso e familiar, camiseta, jeans muito surrado e a barba por fazer – ali estava ele. Não o provável amante, mas o marido a lhe fazer uma surpresa. A primeira em tantos anos e com certeza, na hora certa.

Depois do abraço e beijo cheio de culpa e saudade, soube que ele decidira por uma folga “Vim dar uma incerta”, brincou. Só não contou que a passagem fora adquirida graças ao pagamento antecipado de uma cliente. Isso mesmo, a italiana. Ela não entenderia.

sexta-feira, 14 de outubro de 2016

Finais felizes

“Meus olhos te viram triste olhando pro infinito, tentando ouvir o som do próprio grito e o louco que ainda me resta, só quis te levar pra festa. Você me amou de um jeito tão aflito que eu queria poder te dizer sem palavras, eu queria poder te cantar sem canções” (Esperando aviões, Vander Lee).  

A menina, tão jovem, chorava um adeus na Rodoviária de Porto Alegre. Eu que não tinha nada a ver com aquele pranto, era um senhor, literalmente de passagem que apenas observava, sem poder oferecer colo. Com fones no ouvido, ela mirava o portão por onde saem os ônibus, talvez a espera de ver quem a abandonara a saltar do veículo em movimento e aconchegar-se em seus braços. Cena de filme. 

Mas daquela vez a vida não imitou a arte e lhe restaram as lágrimas, o meu solidário olhar e um matraquear incessante da amiga que a acompanhava. “Ele te ama, só está magoado. Vai voltar de joelhos”. Os homens são mesmo assim, eles podem errar, nós nunca!” Ora, ora, o tempo já me ensinou que toda dor de amor tem cura e o traído perdoa, mas não cura jamais a cicatriz. Melhor que tenha partido. Fica a lição. Se quiser uma aventura, o faça com talento, não deixe furos que os danos serão irreversíveis. 

Ela tinha flores na mão e um DVD do Vander Lee (que faleceu aos 50 anos, em agosto desse ano) e por isso abri com a canção de letra poética que sonha com o cheiro do amante a morar em seus pulmões. Mas a poesia é um espinho atravessado nos erros, nas trilhas do desejo incontido, nas aventuras que alimentam a estima baixa. 

Eu tantas vezes em luta contra esses sentimentos, essas travessuras da razão, percebo que o passar dos anos me asseguram maior controle, mas uma dificuldade imensa de aceitar situações como esta. Não é por ser homem, como disse a amiga, é em função da alegria extrema e única de sentir-se em uma concha indivisível de afeto.

Ao retornar para casa, me transportei para um assento qualquer de ônibus, onde um jovem namorado, marido, amante, p arte carregando sua mala de certezas tristes, de mágoas inesperadas e de uma dor que só se cura, com certeza, com um novo amor. E que desta vez, pensa, será do seu jeito, total, único. 

Eu sei é um tema pueril, repetitivo em dias de tanta violência e crise. Mas aquele choro, em um rosto tão jovem, tão bonito, enterneceu meu velho mas nunca, empedernido coração. Acredito, sim, em finais felizes.    

sexta-feira, 3 de junho de 2016

Como nossos pais

Diariamente milhares de crianças desaparecem feito espumas de sabão em nosso país. Mulheres sofrem com estupros físicos e morais, homens são humilhados por outros homens, nos mais diversos espaços. A vida segue assim, um ritmo acelerado, onde a maioria é escrava de sua própria rede social, de conceitos digitados e nunca, ou raramente aplicados na vida real. Enquanto isso, a marginalidade invade todos os espaços em nome de uma fé, de uma ideologia ou de uma alienação oportunista. É o Brasil moderno, gigante acéfalo, aos trancos.

Precisamos trabalhar, cuidar da família e o suor e a energia gasta com tanto esforço, aparentemente resume-se apenas a esforços braçais, a um vale-tudo que não envolve, por exemplo, a cultura da solidariedade, de um senso ético mais refinado. Eu sinto que nos isolamos e vamos atrás de pautas prontas, temas aparentemente difíceis, mas de respostas fáceis. Estupro? Violência atroz. Prendamos todos os responsáveis. Mas o que sugerimos para combater esse crime. E tantos outros? Encerro a semana cansado de tanta solução instantânea para questões históricas.

Lamento a educação andar tão por baixo. Teríamos respostas sempre ponderadas. O que anda por cima, afinal? Melhor não responder. Filtro tudo o que ouço ou leio. E não bebo para esquecer. Afinal, dezenas de lideranças, mestres que admirei, estão em casa, contando o vil metal, pretensamente guardado por Deus, conforme cantou Belchior, u
m raro menestrel engolido pela loucura cotidiana. Ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais?

Quando vejo a juventude a levantar símbolos falidos, me parece que tudo é apenas uma repetição enfadonha. Os mesmos protestos, os discursos alinhados em ideologias que pouco nos trouxeram de benefícios. Não quero deixar a existência como um dos que perdeu-se na descrença. As crianças continuarão a sumir, perdidos nestes vácuos de prazer, sejam nascidos em berços esplêndidos ou na mais profunda miséria.

A compaixão continuará uma virtude de fracos, caso não façamos nada. Quantos terão de qualquer maneira, o carro de última geração ou a vacina que salvará a vida, sem que seja necessário acabar com o vírus, eliminar a fonte que o recria mil vezes. Tudo pode ser melhor, mais equilibrado, desde que aceitemos o moderno como a evolução do que preservamos e nos permitiu crescer como um todo.

Educação não é nada, sem apego a condição humana em sua essência, aos princípios básicos de respeito às semelhanças e dissemelhanças. Nunca, em nenhum momento, perder o senso crítico que cimenta o verdadeiro conhecimento, aquele que vai muito além das redes sociais, dos acordos embriagados de botecos, das certezas de uma geração contraditória e egoísta.

sexta-feira, 22 de abril de 2016

Bela, recatada e do lar

Minha mãe era tudo isso. Qual o problema?
Como não poderia deixar de ser, debaixo de toda crise sempre pode haver uma polêmica de costumes. A revista Veja nos cedeu oportunidade para um novo debate a respeito da condição feminina e o poder, justo quando uma mulher, a primeira presidente (a), está com o cargo à perigo. “Bela, recatada e ‘do lar,” é o título da reportagem sobre Marcela, a linda e jovem esposa do vice-presidente Michel Temer (PMDB) que, dependendo do que o Senado decidir, será a futura primeira dama dos brasileiros.

Da presidenta Dilma Bolada à primeira dama Marcela do lar! As redes sociais, ávidas por extremismos digitais exibem centenas de comentários e memes onde retratam mulheres ofendidas com o texto da revista e de, outras, uma minoria, indiferentes ou que defendem a condição da moça. Não será a esposa de político que mudará os rumos da nação. Marcela seguirá como pálida personagem na insólita cena política brasileira.

E se é do lar, que bom para ela. Qual o problema? Eu sou filho de uma mulher que cuidou da casa a vida inteira, muito bonita e recatada. Nada a diminuiu por isso. Hoje as mulheres podem realizar outros sonhos. A presidente Dilma Rousseff que luta por manter-se no cargo tem um perfil diferente. Atua no mundo que antes era dominado exclusivamente por homens, mas que já abriu espaços para tantas outras em todo o mundo.

Vejam Hillary Clinton, que nunca foi sombra de seu marido presidente e ainda segurou uma barra quando o maridão aproveitou-se do pouco recato de uma estagiária. Minha amiga Fabiane Tomazi Borba, competente advogada, mulher pública, adjunta no comando da Secretaria Especial dos Direitos Animais, questiona o preconceito embutido nos comentários de muitos de seus amigos no Facebook, que paradoxalmente defendem o direito de cada um ser “e fazer o que quiser, onde quiser”, e no caso de Marcela Temer, acreditarem ser ofensivo considerá-la “bela, recatada e do lar”.

Fabiane diz que também não entenderia se a crítica fosse ao contrário, ou seja, contra qualquer pessoa, defenestrada por ser feia, pouco recatada, totalmente sem pudor, mal ou bem vestida, trabalhasse fora, dobrasse o turno e ainda estudasse à noite, além de cuidar da casa e dos filhos. “Afinal, cada um tem direito de ser aquilo que quiser! Não é isso que todos pregam? Ao menos aqui nas redes sociais, é!” alertou.

Está certíssimo. Se falta recato, é no universo político por onde anda seu ilustre esposo. Lá, belos e feios, fazem tudo em nome do poder. Permanecer em casa, sob certo aspecto, a protege das negociatas, das atrocidades que levam o bem comum ao caos. E vivam as mulheres de bem com o lar, de bem com o trabalho, de bem com a vida. O resto é guerrilha de rede social. Pífia!

sexta-feira, 18 de dezembro de 2015

Meu Natal privê

Eu tenho minha própria e exclusiva comemoração de Natal. Desligo os loucos que dizem matar em nome de Deus, os loucos que condenam inocentes em nome de seu próprio benefício e também, os que se acomodam na loucura alheia. A festa cristã que celebra o nascimento de Jesus Cristo – deve ir muito além de um banquete ou de uma troca de presentes entre colegas, familiares e amigos.

Eu celebro a vida, a parceria e a busca de paz. É o dia em que me sinto nascendo para uma existência muito melhor. Sem choradeira, sem azia ou má digestão. Nem tento bancar o bom samaritano de última hora, buscando doar qualquer coisa, para qualquer um que esteja numa pior. Sempre que posso ajudo. A qualquer hora, qualquer dia.

O Natal é uma espécie de encontro com sentimentos muito profundos. Com familiares e amigos, muitos que já não estão neste plano, outros que simplesmente viajaram para muito longe ou tomaram rumos distantes e ficaram apenas na memória dessas horas passadas. Felizes! Não, eu não vivo em um mundo artificial. Cada memória rebusca coisas bem tristes, crises leves, crises graves, conflitos em casa, tensões externas.

Falta de dinheiro, trabalho, dificuldades nos estudos, problemas com filhos, saúde abalada. A vida nos aplica sustos. A felicidade é uma luz natalina que acende e apaga, mas sempre deixa certo encanto, uma luz a ser mantida com paciência e fé. Eu desisti de buscar o ponto ideal das coisas. Da estrada sem riscos aos amores imperfeitos, porque os perfeitos brotam mesmo é em vasos. E tem lá seu tempo de duração, determinado pela natureza.

Certa vez quase fiquei só com minha ceia. Era tanta crise familiar, tanta fofoca caseira, que temi passar mal com a energia ruim dos outros. Todos na verdade, defendiam seus pontos de vista e, contraditoriamente, bloqueavam a visão com rancor e intolerância. Não combina com a data.

Assim, decidi viver meu próprio momento. Sem dar atenção aos comerciais da televisão, ao Papai Noel – gordo e suado – dos shoppings, aos exageros dos que se dizem os melhores cristãos do mundo e condenam quem se preocupa apenas com presentes e comilança. Pensem pelo lado positivo. Pelo menos estes glutões consumistas, estarão juntos. E trocarão abraços à meia-noite. Um dia, quem sabe, aprenderão alguma lição sobre o verdadeiro sentido deste feriado.

Não conheço o calendário das festas religiosas dos muçulmanos, mas sei que o povo judeu celebra, também por este período, o Chanuká. Acho muito bonito o ritual das velas de chanukiá. Celebrar faz bem à alma. Aos ateus igualmente, a energia de um convívio feliz, que brinda o nascer da esperança também faz muito bem.

É esta energia que me move.

Às vezes, em dezembro, acordo sobressaltado. A vida passa em sonho como um filme só de cenas tristes. E pulo da cama, respiro fundo. Busco qualquer lâmpada onde não vá atrapalhar o sono de alguém e olho ao redor. Percebo que estou só, e a dor que me engole vem de dentro, não foi colocada à força por ninguém. Um copo d’água, alguns minutos de reflexão e pensamentos positivos dão aquele murro definitivo no baixo astral.

Meu Natal não é de fantasmas. É de gente viva que luta contra os maus exemplos, as mancadas. Acerta, erra, cai, levanta e assim vai. No meu caso, só quero uma noite para rir, homenagear o aniversariante e tentar ser tão pacifista como ele foi. É pedir demais?