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quinta-feira, 16 de julho de 2015

Sobre Idas e voltas

Fugue - Kandinski
Deixou a porta aberta, como a liberar uma infinita cauda de noiva. Eram 30 anos de vida em comum. A casa estava limpa. Tudo em seu devido lugar, apenas uma camada rala de pó insinuava-se nos móveis muito bem lustrados. Mas é assim mesmo, igual a inevitável ferrugem que atingia um dos pés da geladeira, após anos de panos úmidos nas faxinas de rotina. Envelhecer é isso, refletiu, enquanto cheirava as mãos. Realmente não existe creme hidratante que retire totalmente o cheiro e, pior, o ressecamento provocados pelo cloro. A partir de agora, usaria luvas. A idade avançava, precisava redobrar os cuidados com o corpo.

Observou mais uma vez o tapete alinhado ao sofá, diante da imensa tela 3D, equipamento de fazer o chão tremer em filmes de aventura, ouvir shows como se estivesse no teatro, de pijamas, chinelos velhos e ancorada na barriga que estourava botões. A vida lhe reservara bons momentos, por isso olhava tudo a sua volta com tanto carinho. De repente lembrou que o forno ainda estava ligado. Retirou o assado que cheirava a pecado da gula, o cobriu com papel alumínio e o repousou no balcão. A salada estava pronta. Gostou daquele toque dona-de-casa. Empresária, passava a maior parte do dia no trabalho, longe dos afazeres domésticos.

Escolhera o melhor jogo de lençol para o quarto do casal, perfumara com aquelas essências que comprava e sempre esquecia de usar. Tudo cheirava a paz. No quarto dos filhos, que já não moravam mais lá, deixara um porta-retratos com uma foto antiga da família em uma viagem de férias a Nova Iorque. Tempos de pouco dinheiro e muita coragem. Parcelaram o passeio em 24 meses, o que não provocara danos ao orçamento doméstico e ainda os mantivera mais unidos.

No corredor percebeu que todos os quadros que possuíam era abstratos. Reproduções de Mondrian, Kandinski e artistas brasileiros como Iberê Camargo. Até um trabalho seu inspirado nestes artistas. Sim, tivera seu momento artista plástica. O marido adorava, ou fingia, em nome do bom convívio à dois. Quem sabe não fora esse abstracionismo, cheio de cores fortes e vivas, o responsável pelo momento que vivia agora?

Retornou a porta de saída. Fotografou tudo com olhos de alguém que some para comprar cigarros e não volta nunca mais. Não era fã de sertanejo, mas lembrou a letra de um reggae – é isso mesmo – da dupla Jorge e Mateus. “Toda história de amor é assim. Tem idas e voltas. Mas tem que ter final feliz. Mesmo sendo escrita por linhas tortas”. Era bem isso que ela vivia naquele momento.

Fechou a porta com cuidado e, conforme combinara com o marido, deixou a chave com o zelador. As passagens de avião, estavam na bolsa, junto com o passaporte. Na mala apenas o essencial para uma temporada no exterior.

Voltaria à Nova Iorque. Sozinha. Queria curtir programas que considerava legais. Teatros, cinemas e compras, porque não resistiria a tentação das lojas e ofertas da Big Apple. Sentiu um arrepio, uma súbita euforia. Nada a ver com o inverno, nem tão frio, ou com o café, nem tão forte. A perspectiva do novo, de um momento que jamais cogitara, a excitava.

Imaginava que os carros na rua, sinalizavam para ela. Que as pessoas acenavam, “Vai lá, boa sorte!!” Igual a tantas outras vezes onde o sonho fora bem mais vivo do que a realidade construída. Um final feliz! Sem culpas, nem regressos amargos. O abstrato das pinturas, coloriram a rotina dos últimos anos, mas a ausência de projetos, transforma o que era um casal, em dois seres solitários. Individualistas.

Viveria essa individualidade então. Em Nova Iorque. Poderia ser na mais humilde cidade do planeta, afinal só existe uma morada para a felicidade que é o coração de quem lhe desenhou a trilha.

sexta-feira, 10 de julho de 2015

Que a crise não seja calipígia


As duas reclamavam de tudo. Do som ensurdecer dos servidores estaduais da segurança, que realmente faziam uma grande muvuca no centro de Porto Alegre, do vento frio que acompanhava a chuva fina e dos pecados da estação. Olhavam-se no reflexo de um imensa janela de vidro,  só para repetir em coro que o inverno estava a destruir lhes a silhueta. “É muita massa”, constatou uma delas.  “Realmente, a massa está furiosa. Essa gente da área da segurança, quando não está acompanhando o protesto dos outros, também sabe fazer o maior bafo”, afirmou, após encolher o estômago e empinar o bumbum, que pelo volume, fora construído em invernos passados.

“Ao bafo? Fazer o que ao bafo? Estou precisando de comida sem gordura". O barulho não permitia que as moças se entendessem. Segundos depois, o sinal abriu e eu as perdi de vista em meio a multidão. O vidro da agência bancária que servira de espelho àquelas mulheres, agora refletia a correria da cidade e eu mesmo - ar cansado de final de tarde -, a refletir sobre o cotidiano agitado, tão farto de gente, e tão vazio de conteúdo.

Mas pensar na crise econômica brasileira, ou na situação da Grécia, sem filósofos ou deuses para resolver seu desiquilíbrio administrativo, não mudaria nada naquele momento. Aliás, os mitológicos deuses gregos sofriam das mesmas falhas de caráter dos mortais humanos. Hoje seriam perseguidos eternamente pelo FMI. Preocupar-se com o bumbum, senhores e senhoras, tem fundamento estético e filosófico, ora.

Até mesmo o grande pensador francês, Jean-Paul Sartre, disse certa vez que "a pátria, a honra, a liberdade, não existem. O universo gira em torno de um par de nádegas". Então, gurias, se a inflação devora, se o dinheiro está escasso, o Estado falido e o mundo nos olha atravessado, deixemos às mulheres, o prazer exibicionista deste olhar crítico a seus próprios dotes calipígios.

Com ou sem alimentos calóricos, dietas rigorosas ou longos exercícios. Nós, admiradores do belo, seja fofo, grande ou mignon, desde que macio, apoiamos este distraído auto-exame. Mesmo às pressas, aquele olhar fortuito à derriére, em meio ao caos urbano, nos reaviva a alma marota. Nos leva a crer que toda causa é tão justa, quanto toda calça feminina deveria ser.

quinta-feira, 9 de julho de 2015

Família bandida

Conversava com duas amigas, ambas jovens pedagogas, sobre os desafios da educação em nossos tempos. Tanta tecnologia nova, recursos fantásticos e, ao mesmo tempo, uma cotidiano embrutecido e violento que nos faz pensar sobre o sentido de tudo isso. Ao ouvir sobre as turmas que haviam assumido, percebi o olhar triste e frustrado das professoras iniciantes. As crianças chegam sem motivação, despejadas por familiares que pouca atenção lhes dá. Mas vá qualquer mestre reprende-los, para receber em troca uma ilógica e desproporcional fúria. Surgem das sombras, na hora errada, com dedos em riste.

Em um pais tão populoso, estamos carentes, não de presídios, mas de pais e mães de verdade.  Porque não temos espaço para tanta irascibilidade. A grande maioria dos que lotam o sistema prisional, surgiu assim, na distração da consciência. Minhas amigas relataram cenas horríveis, verdadeiros espetáculos de terror,  provocados por pais e filhos. Alguns casos chegam à mídia. Agressões a professores e depredações de escolas. Estão nas comunidades carentes, e nos bairros nobres. Crescem sem freios, incentivados por regras criadas por eles mesmos, ou assimiladas em casa.

Meu amigo Plinio Nunes, experiente jornalista, ex-editor da página policial do Diário Gaúcho, postou esta semana, no Facebook, um desabafo sobre a crise moral que vive o Brasil, mais especificamente sobre o Presídio Central de Porto Alegre que,  literalmente, está “botando pelo ladrão”. Plinio lembrou o defensor público que defendeu a libertação destes bandidos, para que não passassem “por esta indignidade”.

“Meu Deus, será que não se dão conta de que é um exército de delinquentes sem condições de recuperação que está sendo jogado de volta ao convívio com a população? Será que os governos não poderiam requisitar ginásios para manter presos, provisoriamente enquanto aguardam uma solução para os presídios que deve ser encontrada pra ontem? Ah, mas aí teríamos que parar com os jogos, com as festas. Que se danem!”

“O mundo está caindo e o pessoal pensando em si mesmo. Na verdade, não pensam em si, porque se assim o fizessem, perceberiam que esses caras na rua irão assaltá-los e matá-los junto com suas famílias. E matarão, a mim e os meus também. Não podemos nem ir às ruas protestar porque os bandidos que se misturam às manifestações agora estarão em número maior”,  percebe Plinio que nos deixa uma última e aterrado questão.“A quem recorrer, a quem pedir ajuda se criminosos e desequilibrados já abocanham as esferas do poder?”