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sexta-feira, 28 de março de 2025

Turismo da reconstrução


Vinha naquele ritmo de um sujeito saudável mas carregado de sacolas de compra. Um mini rancho, proporcional à aposentadoria que passou a receber desde janeiro. Mas era um sujeito prevenido. Tinha acertado  uns bicos de marcenaria para sempre ter um extra. Planejava conhecer melhor o Rio Grande do Sul. Por exemplo cidades devastadas pelas cheias. Como está a reconstrução? Ao me avistar apontando na esquina, perguntou o que eu achava de seu projeto “turístico-cultural”. E me prometeu  iniciar o roteiro pelo Vale do Taquari, “vou dizer que sou amigo do colunista do Alto Taquari, em Arroio do Meio”, brincou.



O que esse amigo propõe é um sadio turismo regional. Temos o que exibir, desde paisagens naturais, gastronomia e cultura. Ele está certo, assim como os quase 600 mil visitantes internacionais que, apenas em janeiro deste ano, chegaram ao nosso estado. Por enquanto as vinícolas na Serra e Gramado - é lógico - atraem num primeiro momento. Mas esse mesmo amigo lembrou outras regiões que valeriam um passeio.



Atualmente, a grande maioria das cidades gaúchas tem condições de absorver um razoável fluxo turístico. Esse meu amigo lembrou que esteve a trabalho em Lajeado e curtiu muito as horas de folga que viveu. Comeu e bebeu bem, comprou um mimo bacana para a esposa e, na hora de retornar, ainda encontrou quem lhe oferecesse cervejas artesanais produzidas na região. “Só me faltou conhecer o Morro Gaúcho. Mas voltarei”. Bem diferente da vez em que passei pela região, muitos anos atrás, num domingo, e não encontrei um único boteco para um lanche. 



Ajudei meu vizinho a carregar as compras até seu edifício. E lembrei dos dias de enchente - em setembro do ano passado, quando pensei que a Capital não seria a mesma. Adeus, turismo. Mas vejo que não é bem assim. Estamos reconstruindo, oferecendo novas atrações e creio que isso se repete em todo o Estado. Cada um à sua maneira, mas convencidos de que se é lazer para os visitantes, é fonte de renda, empregos e um importante meio de valorização da cultura e patrimônio locais. 


quinta-feira, 14 de novembro de 2024

Viva a Repúbica!



Não há nenhuma razão, é isso que está errado, não aceitar nossa condição de mulher, de boneca sentimental, mas o que fazer! Mas por que usamos tanto o coração? Ai que tédio, ser tão sentimental... Por que não ser de pedra, como os homens? Mas é inútil querer imitá-los. Temos que nos conformar em invejá-los" Púbis Angelical - Manuel Puig

Essa história aconteceu há pouco tempo e tem a ver com o 15 de Novembro, feriado da proclamação da república brasileira. O movimento que explodiu lá em 1889 derrubando a monarquia, incentivou Jane a se rebelar contra Jonas, o marido. Ela o acusava de transformar uma bela união estável em um reinado absolutista. Ele o imperador máximo e ela, uma típica rainha do lar, onde o cetro se transformava em vassoura.

 

Jane sabia que, em parte, a culpa era dela. Incentivara mimos demais no início da relação e  Jonas abusava. Por exemplo, exímio cozinheiro na fase de namoro, conquistou a esposa com risotos variados e ainda era carinhoso, gentil e vigoroso amante. Toda semana lhe oferecia flores, ou mimos como livros e doces especiais da confeitaria favorita dela. 


Jonas alegava que assim, manteria a doçura na medida certa para os momentos mais amargos da vida que, inadvertidamente, chegaram apesar dos quindins e outras guloseimas. O marido não se conformou com as queixas. Sentiu-se igual ao Jonas bíblico, preso à barriga de uma baleia. Mas se essa era a sua missão, se esforçaria mais  para voltar a ser o marido que a fazia feliz. 


Jonas reclamou do sufoco nos últimos tempos. Ambos haviam sofrido com o coronavírus, a casa onde vivem, escapou por poucos das cheias, mas todos seus amigos haviam sido afetados.  E de bom esposo, quem sabe, havia se tornado um sujeito assustado com as tragédias naturais. É claro que ela não caiu nessa desculpa. E xingou a acomodação em todos os níveis. Todos! 


E foi aí que acendeu a luz de emergência na cabeça de Jonas. E partiu para um plano que o livrasse da barriga de qualquer baleia doméstica. Jurou que, a cada virada de mês - sem uma data específica - celebrariam a proclamação da “Repúbica” dos países baixos (revisores, sem o L mesmo). Uma forma marota de afirmar que além dos acepipes que ela se habituara em mais de uma dezena de anos, seria um exemplo dedicado de fervoroso amante. 


Jane achou justo e divertido, mas desconfiou de alguns termos do acordo como, “na virada de mês” ou “sem data definida”. Sentiu nessas palavras  um certo tom de procrastinação à caminho. Mas não bancaria a insensível.  E só por isso, deixou o alerta de que, em caso de rompimento do acordo proposto, iria buscar uma comemoração fora de casa, sem direito a queixas ou condenações. 


Ainda citou o próprio Jonas que, no período inicial da relação proclamava:  “O amor elimina o hormônio do estresse, libera endorfina, aquela  sensação prazerosa” e, aparentemente, havia assumido uma condição de marido relaxado. Era um Jonas de castigo, na barriga da baleia do comodismo. Mas se na criação da república brasileira houve um compromisso pela unidade, ela exigia rigorosa fidelidade às antigas promessas do casal. Era isso ou ele sofreria um autêntico golpe de estado, bem lá, na tal “repúbica.” 


quarta-feira, 2 de outubro de 2024

O voto e a consciência

Na semana passada, por pouco não ultrapassei erradamente um acesso rodoviário. Esbravejei contra a falta de sinalização. Foi aí que meu caroneiro, discretamente, apontou a imensa placa, com seta e velocidade limite indicadas. Tudo perfeito, não fosse a pichação com riscos que a encobriram totalmente. E aí me dei conta de que a maioria gosta de criticar administrações públicas mas esquece sua parte nisso. 


Com certeza não foi um parlamentar sem noção quem destruiu a sinalização. Talvez tenha sido um sujeito que a toda hora, critica os políticos. É fácil dos candidatos despreparados e da falta de ação nas esferas governamentais. Queremos que se cumpram as leis, mas  aceitamos deixar nosso rabo preso a uma placa destruída de trânsito.


Vejo militantes, muitas vezes, constrangidos ao divulgar as propostas de seus candidatos, como se fosse um pecado, uma guerra santa que desmerece, indiscriminadamente, o esforço de tantos. Serão todos assim? Anular os votos em protesto é uma promissória em favor dos que lucram com a miséria, com a ignorância. Os maus políticos.


Outros reclamam das propostas, da mesmice apresentada em ralos minutos nos meios de comunicação. Querem originalidade, mas em seus cotidianos, o que fazem para tornar a vida melhor, menos repetitiva? Alguns quando chamados na escola porque o filho aprontou, por exemplo, desabam em ira contra os mestres, na defesa irracional dos rebentos. 


E os que praticam pequenos delitos? Receptam, por exemplo,  fios de cobre que escurecem vias urbanas sustentadas com nosso caro imposto! Usam o carro da firma para assuntos pessoais e, se as taxas são muitas, sonegam. Pagar o imposto e cobrar sua aplicação correta, seria bem mais ético. É fundamental ler as propostas que, afinal, representam o nosso futuro. 


Candidato não brota em  árvore. É um sujeito igual a nós, que bota a cara a bater por gostar de política. E se ele entrou nessa para se locupletar, na próxima votação, o povo que é atento, o pune nas urnas. Nem precisa conspirar nas redes sociais. Mas alguém aí fiscaliza? Lembra em quem votou na eleição anterior? Que feio! Anotemos tudo, então. 


Está na hora de limpar a política do conchavo espúrio, do interesse exclusivamente pessoal. Pensar no coletivo faz o indivíduo andar melhor, mais seguro, dono de seu nariz. Não desligue o rádio e a TV, anote e se faltou criatividade, sugira algo melhor. Porque o maior mal está à espreita dos que se omitem. 


Fique atento: alguns têm um título eleitoral em uma mão e uma arma na outra.  Nós que ocupamos as mãos com o trabalho que carrega o país, vamos levar o título eleitoral  no bolso esquerdo ou direito do peito e transformar esse documento na arma que dispara saúde, cultura, segurança e oportunidades. 


Aquilo que prometem apenas nós, gente do povo, pode fazer valer, se usar corretamente a urna eleitoral. Portanto, atenção ao horário gratuito, que não tem nada de gratuito e pode custar caro aos que se omitem. Dê essa chance a você mesmo e, se antes não funcionou, faça um mea culpa, vote outra vez. Mas nunca,  jamais, se omita.

sábado, 21 de setembro de 2024

Divertidamente no espelho

 

Uma querida amiga curtiu minha crônica  Divertida Mente. “Enfrentamos a  ansiedade. Estamos juntos nessa.” Eu fiquei pensando sobre como esse mal vem arrastando gente boa, dedicada aos afazeres diários e os obriga a enfrentar o risco do desânimo para quase tudo. Aquela sensação de fugir das coisas boas quando, vejam só, o importante é justamente estar aberto a tudo que nos melhore o humor. 

Lembro da vez em que fiquei me enrolando para ir ao aniversário de um amigo, vizinho de porta. E o que aconteceu? Meu pai literalmente me empurrou para fora de casa. Ao chegar na festa, tudo passou. Foi uma noite bacana de risos e alegria. Se eu tivesse seguido em casa, o enjoo teria continuado, firme e talvez, mais forte. 



Na semana passada li um extenso artigo da norte-americana Alicia Meuret, professora de psicologia que, de certa forma, confirma o acerto de meu velho. O  ilustre leitor encaramujado pode me perguntar: E quando falta aquele empurrão amigo? Bom, aí é que entra o exercício proposto por esse estudo psicológico, ou seja, reforçar ou criar “uma  musculatura da felicidade,” o que não é participar de uma academia de fisiculturismo (mas se lhe fizer feliz, vale). 




Meuret percebeu que adultos com depressão ou ansiedade ao participarem de sessões de psicoterapia focadas em aumentar as emoções positivas, tiveram melhoras consideráveis em relação a outros  grupos cuja terapia se concentra em reduzir as emoções negativas.  O estudo valoriza o que classifica de sensibilidade à recompensa e a partir daí gerenciar suas emoções. 



Por exemplo, eu não queria ir à festa. Estava no auge da depressão comum para muitos na adolescência, mas ao chegar lá, aos poucos fui absorvendo o astral que celebrava com humor, risos e oferecia lembranças que dariam energia a essa tal musculatura de experiências felizes. E isso vale até para aqueles que têm dificuldade em viver situações prazerosas - a anedonia - como se chama cientificamente.



Isso não significa que preciso fingir não ter problemas psicológicos, o que Mauret orienta é basicamente criar alternativas para se atingir a alegria e, quando chegarmos a esses momentos, valorizá-los, criar lembranças agradáveis. “Comece planejando uma atividade por dia que deixará você feliz”, aconselha a psicóloga. 



Algo tipo de se presentear com uma comidinha favorita, ligar para um amigo, ou dar uma escapadinha a uma confeitaria. Sei, você não eliminou as coisas ruins, mas criou memórias positivas. Pode parecer piegas mas, em meu caso, funciona muito bem. Bate uma sensação ruim, eu fecho os olhos e volto aquela lembrança boa que cultivei - o som de uma música, do vento ou um dia de muita luz. 



Muitas vezes nem lembro direito o que aconteceu, ou onde vivi aquele momento alegre. O importante não é ter um registro quase fotográfico, mas amplificar a  sensação de que permanecerá ali, tatuada na musculatura de recompensas boas.  Afinal, não temos uma borracha que apague a  dor, frequente em dias de tantos malfeitos. Mas valorizar o que nos eleva a estima, como diz, jocosamente, um amigo, “parece difícil, mas não é fácil”


sexta-feira, 30 de agosto de 2024

Inverno é a geleira da paixão?

O vestido da moça levantou até onde não deveria, provocado pelo forte vento da manhã. E a cena, ao contrário de qualquer conotação sexy, foi hilária. Era uma cebola de panos multicoloridos até se chegar a um abrigo velho, cor de abóbora que provocou risos da turma que aguardava o sinal verde, na esquina da Rua Uruguai com Siqueira Campos, no Centro Histórico de Porto Alegre. É difícil manter a elegância no frio. Namorar ainda é pior.

Aprendi alguns macetes que podem ajudar a esquentar os corpos em todos os sentidos. Um jantar a dois, por exemplo, nos dias frias não depende apenas de caldos e sopas. Pitadas estudadas de pimenta, por exemplo, ajudam muito. Dependendo da variedade, desde a de menor até as de maior efeito picante (ui), a pimenta melhora a irrigação do sangue, o que causa uma sensação de bem-estar e chega lá, naquela região que se escondeu do frio abaixo de ceroulas e outros panos.

Até amendoim com casca pode ajudar. Sim, não é piada, a vitamina B3 favorece a circulação sanguínea, aumenta a vaso dilatação. Nem precisa sacudir a casca que caiu no colo do namorado (mas nada impede a prática).

Chocolate quente – nem tanto para não queimar dedos e línguas – mas na medida para liberar energia, graças a três componentes – a cafeína, a teobromina e a feniletilamina. A primeira estimula o corpo, a segunda especificamente o coração e o sistema nervoso, e a última, troca aquele ar de “tu tá mesmo a fim?” por um sorriso estimulante. Sem tristeza, o resto é com você, amantes latino. Aliás, tem gente que inclui o uso tópico do chocolate nas brincadeiras amorosas. Aprovo sem restrições.

Bem vestidos - E por favor, a dica final, fundamental. Permaneçam bem vestidos, cobertores para dar aquele conforto quente. Provocação com roupas também é válida. Fantasiem aqueles tempos adolescentes dos primeiros namoros, quando tudo era a tato, no escuro do cinema, ou no sofá da casa assistindo uma sessão da tarde da tevê, enquanto o pai vigilante roncava.

Lambuzados - Até chegar a hora que tudo, mas tudo mesmo aqueceu, se decide o que é possível ser descartado do corpo já aquecido. Afinal, somos gaúchos e - mesmo em invernos amenos - precisamos aprender a enfrentar essa estação quase estraga prazeres. Caso contrário será um festival de sopão, feijoadas, massas com molhos fortes pouco estimulantes. Muita boca engordurada, muita barriga cheia e pouca satisfação em outros campos.

Não é difícil namorar no inverno. Pratiquem! O negócio é ser criativo, ter paciência. Se der tudo certo, quando o vento levantar o vestido de uma desavisada na rua, ninguém se abalará para espiar.  Estarão todos muito bem comidos.

terça-feira, 13 de março de 2018

Incidente em Praga


Ao abrir a porta, a cena lhe pareceu familiar: uma silhueta de mulher atenta a um livro, emoldurada pela luz quente do entardecer que cedia espaço ao brilho do néon, abaixo de raras nuvens no céu de primavera. Lembrou a viagem a Paris no ano anterior. A Europa deixava de ser apenas uma coleção de cartões postais enviados por amigos extasiados, ou recortes de revistas, com dicas de lugares para se conhecer um dia. Roma, Londres, Madri, Lisboa e uma série de pequenas vilas perdidas em lugares que se tornavam ainda mais bonitos ao lado da mulher amada. Em um imenso pote de vidro, haviam guardado rolhas de vinho e espumantes de todos os cantos. Ali repousava o espírito feliz de um passeio inesquecível. Em todos os sentidos.

Aproximou-se da poltrona e a diarista assustada, desculpou-se por folhear o livro que inundava a mesa de imagens. Pagou a moça que levou consigo o asfixiante rastro de perfume e alvejante. Mas a mulher amada não estava mais lá nem em fotos, Tivera o trabalho de guardar para si, apenas as paisagens visitadas. Especialmente Praga, a linda cidade tcheca que encerrara a excursão. Com a grana já curta, permaneceram no “Ai 4 Angeli”, um flat restaurado, bonito como tudo naquela cidade acolhedora.

O gerente falava português! E foi assim - às margens do rio Moldávia -, na cidade das cem cúpulas, uma das mais lindas da Europa que juraram um amor tão harmonioso e duradouro quanto aquela romântica metrópole com suas ruelas de traçado irregular, a revelar belezas em cada curva e a surpreender com seu povo simpático e culto. Por ser a terra de Antonin Dvorak, o famoso compositor erudito, haviam combinado assistir a um concerto no Teatro Nacional. Mas naquela tarde, ela sentiu-se mal. Estava muito enjoada. Cansada da imensa caminhada.

Acabou convencendo-o a ir, mesmo assim, ao concerto da Sinfonia do Novo Mundo, escrita no período em que o Dvorak vivera em Nova Iorque. Era uma oportunidade única. Quando voltariam à Praga? E somente por isso aceitou deixa-la a sós. Antes do último movimento sinfônico, a preocupação com a amada, o fez deixar o teatro. Correu de volta ao flat.

Ao entrar no quarto, ao contrário da mulher abatida e nauseada, deparou-se com um cenário kafkaniano! Sim, Praga é a cidade do atormentado escritor Franz Kafka. Na imensa cama, a mulher amada sofria uma terrível metamorfose de anjo em voluptuosa barata a rastejar em busca de roupas e desculpas sensatas.Qual a lógica para um momento assim?  

Retornaram em aviões distintos e o casamento que estava programado para o final do ano, foi cancelado em vários idiomas. Ouvi-la - mais tarde - justificar que a euforia, a beleza do passeio, o clima sensual da viagem a levaram a cometer tal desatino, apenas o fazia sofrer ainda mais. "Foi só uma aventura. Eu te amo!" jurou. Só?

O porteiro, um húngaro bonachão procurou consolá-lo: “Aconteceu aqui, longe de tua casa. Ninguém vai saber, se você não contar". Mas qual a vantagem de descobrir – em solo estrangeiro - que a namorada não tinha escrúpulos? E ainda perdera o final do concerto! Assim, enquanto folheava o livro, decidiu voltar a Praga. Ainda está em dívidas quanto a data. A única certeza é de que, desta vez, estará só.

quarta-feira, 13 de setembro de 2017

Romantismo

Meu bem entenda, nosso problema é semântico.
Na verdade, eu não sou aquilo que idealizas.
O par perfeito, um ser etéreo, romântico.
Desista de mim se é disso que precisas.


À noite me encontrarás abraçado a lua.
Ou entre estrelas a medir o infinito...
Pobre tolo, dirás antes que meu verso conclua.


Imagina! Mensurar o imensurável!
Mas não será tua, a alma romântica?
Enquanto eu, patético, em esforço admirável
Tento empiricamente compreender física quântica.


Beijar é química pura. É a mistura homogênea de sais
Beijar eriça, tira um corpo da inércia!
Viu? Voltamos à física, apesar dos suspiros e dos ais.
Confundir com romance - me perdoe a rima - é solércia 

quarta-feira, 16 de agosto de 2017

Marido dez porcento

Cansada do marido farrista, a indignada esposa o expulsou de casa. Não bastava a crise que lhe roubava clientes na loja e ainda tinha que aturar as escapadas conjugais. As amigas a recriminaram. Ele era trabalhador, simpático e boa pinta, embora volta e meia sumisse. Era um carteado em lugar ermo, pescarias em açudes de sereias e um celular repleto de números e ligações estranhas em horários incômodos.

Na meia idade, filhos criados, não precisava aturar um gato fujão. O único felino naquele seu espaço teria quatro patas peludas.Referia-se a Charles, um siamês de personalidade forte, por coincidência, presente do marido que, aliás, não se conformou com a expulsão. Queria a milésima chance. Mas resistiu bravamente ao assédio de flores e ligações chorosas. Ela jurou que também iria cair na noite, com as amigas. 

Mas bastava ouvir o refrão "...A terceira música nem acabou. Eu já to lembrando da gente fazendo amor. Celular na mão, mas ele não ta tocando..." e os dez porcento aumentavam na conta da saudade. No meio de tudo isso, até o siamês sumiu. Chovia muito, ventava demais e o gato não retornou como em outras vezes. Mais um macho a lhe decepcionar. Charles, pelo menos, era solteiro e independente, como todo bom siamês, consolou-se. Uma semana depois, apareceu o marido confessando o “seqüestro” do gato. 

Só o devolveria se o aceitasse de volta. Jurava ter amadurecido. Argumentou que era igual aos gatos que gostam de passar a noite na rua, e sempre retornam querendo carinho. Ou seja, se as mulheres amam os bichanos, devem compreender também os homens, que têm as mesmas características. A infeliz comparação provocou gargalhadas na esposa. 

O bom humor, mesmo nas horas difíceis, era o que mais a agradava nele. A noite tinha sido pavorosa. Chuva e vento, os bares vazios de quem lhe atraísse. Também sentia falta do "cretino sem-vergonha". Abriu a porta e entraram felizes, o homem e o bichano.  Mas alertou, com olhos de gata arisca:" Só castração para acalmar um gato fujão e virar um dócil amiguinho. Então, o mesmo vale aos homens fujões."

 "Não brinca assim...", gemeu o marido com ar sofrido. Ela falava sério. No dia seguinte, o bichano foi castrado. Acabaram-se as noitadas de cio. O outro gato, impactado, acalmou-se. Teve "castrados" o celular, que ganhou um novo número, e, pior de tudo, senha compartilhada. As festas, ou pescarias, ela acompanha. Ou ficam em casa assistindo filmes. Não sei se um marido fujão tem cura, mas por enquanto ela economiza os 10 porcento. 

quarta-feira, 12 de julho de 2017

Democratas sonâmbulos

Sintonizar o rádio, ajustar a antena no melhor sinal digital é como abrir espaço para a pior em áudio e imagem. Não temos mais noticiários, temos séries diárias, com velhos e novos personagens em roteiros mal escritos, despidos de verdade. Quem de nós pensou que seria assim? Tanta renúncia, tanta voz perdida em discursos onde apenas permaneceram os murros aos céus. Hoje cada uma daquelas mãos fechadas desce para nos atingir na esperança. Não tenho mais bandeiras. Não me animo a dizer que um dia votei nesse ou naquele, porque me envergonha o voto que dei. Eu tenho uma vergonha alheia dos que defendem bandidos. O que é isso, companheiros?

Um certo romantismo revolucionário, como bem observa Fernando Gabeira em “Democracia Tropical – Caderno de um aprendiz”, torna belo, mascara os desvios criminosos de quem se admira. Eu que não tenho amigos para me emprestar um sítio, ou milhares de dólares para o custeio de advogados, paguei por meus enganos com juros e uma correção monetária e moral abusiva. Mas durmo em paz com minha consciência.

Em minha inocência olhava para as regiões carentes convencido de que lhes poderíamos levar cultura, educação, trabalho e amor próprio. Mas ajudamos aqueles a quem elegemos a fechar o círculo e, no inverso do esperado a repetir, de terno e gravata, o sistema brutal e individualista dos guetos.

Esse sistema corrompido ainda permitiu a formação de grupos bem arregimentados que se infiltravam em meio aos que nada tinham para perder e os educavam na arte do ódio, em ocupações em nome de causas sociais. Enquanto isso, os parlamentos mudos, a trocar votos por ouro, joias e contas no exterior.

Hoje sou vizinho de gente sem fé, sem disposição para nada que não venha de mão beijada, ou na força bruta, afinal “não dá nada”. E se me tirarem a vida por um celular velho, amanhã terá um mais na mão de um guri assustado. Se for preciso, morrerá também. Não ocupamos quem estava desocupado e eles se ocupam de nossa energia.

Cada partido, cada movimento, cada ação individual ou coletiva me parece estar contaminada com um vazio de propostas, de sinceridade. A imoralidade do Planalto contaminou a nação e hoje nos dividimos em siglas, em cotas, em codinomes. Somos filhos do insólito. A política virou uma armadilha.

A nossa missão, o nosso dever é desarmar essa armadilha, reunir as centelhas de indignação que ainda sobrevivem ali em seu espírito de cidadão e juntos formar novas lideranças. Eu falo aos que perderam familiares na guerra do crime, aos que perderam o direito a uma aposentadoria digna ou aqueles que jogaram fora a bandeira de seu partido. A culpa não está na ideologia, mas em quem a corrompe.

A novela em capítulos da Operação Lava Jato, só terá um final feliz, aquele que esperamos, se nos livrarmos daqueles que lucram com a nossa infame alienação, a nossa incentivada ignorância e essa estúpida convicção de que se der tudo certo para mim, os outros que se lixem. Os outros, com certeza, são os que nos lixam. Acordemos pois, brasileiros! Eu cansei desse sonambulismo.

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2017

O legado de cada um


A vida passa tão rapidamente que não nos damos conta de coisas boas que poderíamos deixar gravadas em nossa história. Nada revolucionário, ou midiático, mas ações cotidianas que serviriam de inspiração aos jovens ou exemplo a ser citado pelos mais velhos. Na maioria das vezes, nos acomodamos em algum ilusório conforto material, ou nos impomos a um ritmo alucinado que engole o tempo, em nome da luta pela sobrevivência. Atitudes que embrutecem o espírito, envolvidas na indiferença que, fatalmente nos jogarão a um vácuo existencial terrível.

Tantas portas para abrir, mas as chaves, sempre nas mãos dos mais rápidos, nos levam a essa disputa insana pelo que imaginamos ser a realização pessoal. E não adianta rezar, ajoelhar pedindo bênçãos e ajuda aos desvalidos se logo em seguida voltamos a nos encerrar em projetos alienados ao entorno social e íntimo. Tantas vezes recriminamos, sofremos com as vilezas cotidianas, mas permanecemos acomodados e atentos aos relatos que julgamos importantes para nossas fantasiosas bibliografias.

Infelizmente não é só isso. É preciso mais para se atingir essa tal realização. Na semana passada li no Facebook de minha prima Lísia, formanda em Psicologia, onde lembrava que, logo no primeiro semestre na faculdade, uma de suas professoras solicitou que todos escrevessem uma carta endereçada a eles próprios sobre qual o legado que gostariam de deixar às pessoas ao cursar Psicologia. A carta foi lacrada e devolvida apenas no último semestre do curso.

Ela confessou que gostaria de “desaprender” algumas coisas e dar espaço a uma forma de viver mais livre e produtiva. Em outras palavras, fazer da profissão uma possibilidade concreta de ajudar aos outros, objetivo que se alcança com o estudo. “Gostaria de saber desapegar do meu eu e poder olhar para além dos meus limites e da minha realidade para que outros tenham a chance de viver, amar e aprender o quanto antes”.

Assegurou, antes mesmo de um contato mais efetivo com a psicologia, que seu legado deveria surgir do esforço em conhecer não apenas as verdades que trazia consigo mas, com respeito, buscar o entendimento da realidade alheia, o que se atinge com chances iguais para todos de um tratamento psíquico, “voltado ao melhor em saúde mental para um crescimento equilibrado, focado na essência do bem, para o desenvolvimento da humanidade”.

Com certeza, o verdadeiro legado de qualquer profissional, está na capacidade de levar qualidade de vida aos que necessitam de ajuda. Realização pessoal não é apenas retorno financeiro, mas, principalmente, aquilo que se atingiu muito além dos limites materiais e transformaram, positivamente, situações de conflito e dor. O dinheiro, se utilizado frivolamente, apenas cobre de adornos e paparicos que, um dia, serão arquivos mortos de projetos incompletos.

“Espero fazer jus a minha carta”, concluiu. Pelo que li e, diante da atitude apaixonada que se releva em artigos compartilhados nas redes sociais, pelo empenho na conclusão do curso, tudo está muito bem encaminhado na trilha de uma profissional que busca a felicidade na realização alheia. Que maneira bonita e completa de se deixar um legado. Quem sabe, outros não se interessem pelo “desaprender” desta cultura da inércia, por uma existência nova, repleta de humanidade que tanta falta faz na atualidade.