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sexta-feira, 27 de abril de 2012

Fábula de outono para moças casadoiras

Metafísica ou...
Uma taça de vinho, um pote com frutas picadas e chocolate em lascas. Era um dos primeiros dias da estação e imaginou que assim enfrentaria melhor o frio. Abriu as janelas, o sol nosso de cada dia poderia rarear a partir de agora. Precisava aproveitar todas as horas de luz. Outono é sempre meio esquisito. Um amargo-doce, feitos os petiscos na mesa a dividir espaço com um vaso sem flores. Volta e meia caía em uma discreta melancolia. Ligava para as amigas. Queria assunto. E lá vinha algum tipo de programa que incluía passeio em van, para alguma cidadezinha na Serra ou shopping em Porto Alegre.

Nestes períodos pensava em inscrever-se em curso com abordagem metafísica, queria ir além da matéria, dar mais sentido ao relógio que travava o tempo em algumas estações. Era nesta época do ano, cheia de roupas, pães e caldos que relembrava o marido. Ele partira vítima de acidente de trânsito fazia já algum tempo. Não tiveram filhos, e as memórias eram suas parceiras. Lembra aquela tarde fatal. Descia do carro – não era a sua hora – para assistir a uma camionete desgovernada, dirigida por um motorista embriagado, encurtar sua melhor experiência de vida a dois.

Haviam se passado cinco anos. E somente no mês passado sentiu-se atraída por alguém. Foi algo assim, sem intenção. Ela pedira um café expresso e lhe serviram um cremoso capuccino. Na mesa ao lado, um senhor recebia o seu expresso. Desfeita a confusão, foi elogiada por estar lendo poesia em pleno século 21. “Liberdade na vida é ter um amor pra se prender”, citou ele, confessando ter “roubado” a frase do poeta Fabrício Carpinejar, em um caderno da filha mais nova.

A conversa durou alguns minutos ali, outros minutos, por e-mail, e, nos dias seguintes, algumas horas de prosa. Em tímidos e fracionados encontros, souberam o suficiente para afastar riscos. Solitários, ele com filhos, ela com lembranças. Equilibrados, bem resolvidos e quem sabe prontos para algo novo. Mesmo assim, fazia já uma semana que não atendia as ligações dele. E os perigos dessa vida? Estava satisfeita assim. No frio, um bom edredom lhe aquecia o corpo. Ao levar a taça aos lábios – para o primeiro gole do vinho citado na abertura deste texto – ouviu o toque discreto na campainha.

Não esperava ninguém muito menos ele que, educadamente, pediu para entrar. A sala do pequeno apartamento, em tons pastéis, reduziu-se a uma concha apertadinha depois daquele primeiro beijo macio, mas com muita “pegada”, como gostava de dizer. Às suas costas ouviu o ruído de papel celofane amassando-se. Enquanto a abraçava, ele coloca um botão de rosa vermelha no vaso. Naquele final de semana, não teve passeio de van com as amigas, nem qualquer proposição metafísica. Mas no sábado seguinte, houve o anúncio oficial do namoro. Que festejou o amargo-doce outonal, muito parecido com a vida real. Aliás, aquilo era a vida real.

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