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quarta-feira, 17 de junho de 2009

Alma gêmea na faxina


Ela se preocupava com detalhes e limpeza. Vivia no apartamento típico de revista de decoração. Mas do que  servia tudo isso sem namoro no sofá ultra-aspirado? Rolar sem espirros nos tapetes a prova de ácaros. Sozinha? E os lençóis? Alvíssimos, macios fios egípcios, cheirando a limpeza. E olha que os namorados seguiam rigorosamente um mesmo perfil perfeccionista. Nos primeiros dias, as coisas sempre iam bem. Até a hora dos palpites sobre marcas e métodos de faxina. Como aceitar a dica do novo amor sem estresse? Era assim que, com decepcionante freqüência, suas paixões escoavam pelos ralos polidos.

Deles permaneciam livros, teses e longos papos na madrugada que muitas vezes haviam culminado em excitantes discursos intelectuais. Aqueles  tipo gourmet sofriam mais, precisavam estar atentos às receitas e a limpeza da cozinha. Mas volta e meia, eram tão precisos e previsíveis que tudo acabava feito fricassé de vernissage. Insosso demais. Lá ficava ela, sozinha outra vez, saudosa do amor entre ervas finas, especiarias e detergentes. Sabia que ao entrar na maturidade escrava de suas teses, presa a longos debates consigo mesma, poderia sentenciar-se a solidão involuntária.

Queria lista de enxoval. Roupa nova de cama. Foi aí que surgiu aquele quarentão, divorciado e independente. No catálogo dos deuses, poderia ser classificado na categoria Baco. Bochechudo e simpático. Mas habituada ao tipo intelectual, ele insistia em provocações eruditas em alemão! Tudo que ele sabia do idioma de Goethe era a ressaca horrível de um antigo Liebfraumilch, vinho branco frutado e enganador que o seduzira tantas vezes na juventude.

Eram opostos. Mas como toda fêmea, achou que poderia moldá-lo. Buscava a mais limpa, cheirosa e límpida alma gêmea e caíra na armadilha da simpática imperfeição estética, na sedução do diferente. Quando pensava em reclamar do excesso de farelo, dos pingos de bebida na toalha alva, vinha o beijo carnudo sempre na temperatura ideal.

À noite, tanto amassavam os lençóis passados a vapor que ela temia ve-los inutilizados no dia seguinte. Era jogada de lá pra cá, virada do avesso até pedir pelo amor de Deus que parasse. Esperto, jamais obedecia. Quando ia embora, ainda sobrava uma faxina extra a ser feita. Ele era desregrado demais. E foi apenas por isso que acabou dispensando aquela versão desorganizada de alma gêmea.

No dia seguinte, caprichou na faxina, manchou de lágrimas o lençol que trazia o cheiro vivo e gostoso dele que, por sua vez, insistiu em um último apelo por reconciliação. Argumentou que ela exagerava, que sofria de toque e precisava de tratamento psicológico, Ela permaneceu impassível. "Uma alma gêmea, combina em tudo," respondeu. Ao contrário dos anteriores, que racionalizavam tudo, ele buscou a conciliação em um poema de Manuel Bandeira, que segundo ele, definia o momento que viviam.

 "Se queres sentir a felicidade de amar, esquece a tua alma. A alma é que estraga o amor (...) Deixa o teu corpo entender-se com outro corpo. Porque os corpos se entendem, mas as almas não."  E foi embora, a espera do retorno que, sinceramente, não sei se aconteceu. O que vocês acham?

Um comentário:

Anônimo disse...

Grande poeta e sedutor literário! A busca da "moldagem do ser amado" é, sem dúvida, o caminho mais curto para abortar a relação. É estranho, não concordas poeta? Ao conhecemos nossa cara metade somos seduzidos por seus predicados (e até defeitos) e o jeito de ser. Mas, concluída a tarefa de fisgá-la, a prioridade é mudar seus gostos, passatempos, amigos e hobbys. Por que fizemos isso, preclaro amigo, me responda...

GILBERTO JASPER - jornalista - Porto Alegre