O filho surgiu de repente e abraçou-lhe as pernas. Em sua fantasia, incorporava Naruto, o menino do desenho japonês que trás um monstro aprisionado no peito e tem a missão de salvar a Vila da Folha Oculta, onde vive. Assustara-se com a própria brincadeira. Os outros o viam apenas como um piá travesso, mas acreditava estar no caminho de transformar-se no poderoso ninja Hokage. Inimigos desejavam assassiná-lo. De qualquer forma, ao abraçar a mãe, encontrava segurança e a certeza de que toda a luta valeria a pena.
Os vizinhos não entendiam aqueles pedaços de papel colocados nas paredes do corredor do edifício. Ela mesma explicava - entre pedidos de desculpas e auxiliada por outras mães de ninjas do prédio, que eram os
kibaku fudai - papéis bomba – com dizeres mágicos na linguagem
kanji, a lhes dar poder de fogo e explosão. Intimidavam prováveis invasores. Com ela o aprendiz de ninja negociava outros alvos estratégicos que sustentariam a missão de protejer sua gente. Dela advinha o dom de avaliar o certo e o errado, acima de qualquer outro poderoso ninja. Mesmo após um dia estressante de trabalho, ouvia pacientemente tudo sobre os detalhes da complicada vida de Naruto esmiuçada nas histórias que a tevê exibia todos os dias.
Mais tarde, ao anoitecer, chegava a vez daquele sujeito pesadão a laçar-lhe as pernas. O ninja-marido buscava alguma recompensa. Ela o ungia com os óleos da vitória, cicatrizava feridas de combates perdidos. Encontravam a fantasia da sobrevivência em um mundo real onde a escalada de poder, vitórias e conquistas superava o mais cruel de todos roteiros de
mangá japones. O pai, o companheiro, também trazia em seu peito um monstro aprisionado. E acreditava ter a idêntica missão de proteger, quem amava, dos perigos reais. Igual ao filho, sentia medo, sofria com a insegurança. Arrancava afagos para acalmar as tormentas da alma e prosseguir, ao alvorecer, em sua missão.
Levava consigo uma
shuriken, aquela arma em forma de estrela que os ninjas usam para confundir inimigos. Era um presente do filho que ela - como boa mãe - aconselhara a deixar guardado junto ao bolso esquerdo do paletó. Agradaria ao ninja aprendiz da casa. Quem sabe, o brinquedo brilhante não acabasse refletindo maus presságios? Tornara-se um amuleto da sorte, desde então.
Ela conseguia enquadrar-se nesses universos fantasiosos, tipicamente masculinos. Sabia, a vida era mais do que aquilo, mas reconhecia que eles a tiravam um pouco os pés do chão. Ensinavam as vantagens da conspiração do sonho, de alivar a pressão. Tinha fé, identificava um inimigo a quilômetros de distância e contra ele, usava sempre seu instinto e sensibilidade aguçados. Era seu melhor dom. Organizava o singelo e administrava o complexo, fosse no lar ou no trabalho, ambientes que lhe absorviam mais do que desejava.
Cadê o tempo para os livros que tanto amava? Os minutos, rarefeitos entre compromissos pesados, para a prosa com amigas? Não lutava pela supremacia de uma distante liga ninja. Cuidava da vida presente com a atenção e respeito que essa merece.
Heroína? Sentia-se apenas uma mulher. Isso, com certeza, representava mais do que tudo. Nem precisava um dia especial para lembrar-lhe de sua força, da necessidade de ser respeitada como tal. Sabe que ainda humilham homens considerados fracos e cruxificam mulheres fortes. Mas era forte.
Abrir-se ao amor lhe permitira gerar a vida. Essência da feminilidade que ensina a compreensão do mundo, de seus guerreiros domésticos e a circular entre comandantes ou comandados em sua rotina profissional. Exigir mais o quê? Reconhecimento e autonomia, com certeza. E um bom SPA! Tudo isso sem pegar em armas. Muito bem maquiada e de cabelos, unhas e pés rigorosamente em dia. Aliás, todo dia é Dia das Mães. Parabéns!