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sábado, 12 de novembro de 2011

As contas do adeus*


Será que partir é sempre necessário?
Todos os dias ela contabilizava os minutos, os segundos, como quem administra uma poupança de milhões em ouro ou dinheiro. Era uma conta onde a valia era o quanto a menor lhe restava. Queria apenas a liberdade de abrir a porta e entrar em um novo mundo, uma vida renovada. Ar! Queria ar! Sem humores instáveis, dúvidas, ânsias e rádio patrulhas, decisões  sem pé, nem cabeça. Paz! Queria paz! Sábados eram o inferno virado em compras, faxina em casa e uma sensação de que à noite desabaria defronte a tevê, sem muito o que escolher. Tudo isso seria aceitável, não fosse ainda pressão de dividir problemas e pouco prazer com alguém que já lhe inspirara tanta satisfação, tanta energia e bom humor.

Era uma conta cheia de incertezas, juros a pagar, excessos engavetados ou congelados, em um frost free de indiferença. Pior, muito pior, era a certeza de ao dividir o pouco, pagava o dobro em reflexões sem nexo. Ou com todo nexo. E foi assim, nesse pinga–pinga  típico de quem não sabe bem o que mira, que jurou: “hoje eu decido: boto tudo em pratos limpos.” Os leitores já perceberam que a coisa gira em torno de uma relação desgastada. Um romance sem chama para acender qualquer tipo de salvação. Acomodado.

Para tornar tudo mais civilizado, saiu do trabalho e foi à estética. Coisa rara. Mudou o corte de cabelo, fez unhas, massagem. Ouviu fofocas, confidenciou que estava decidida a mudar de vida. Por que mulheres confidenciam essas coisas. Chega de amassar o pão e alimentar outras fantasias. Gostou da metáfora! Saiu lindinha, embora aquela barriguinha. Preparou uma janta leve, arrumou a mesa com a melhor louça. Seria um encontro de contas, ou melhor, uma aceno de mão, um tchau civilizado. E serviu-se de espumante. Ele chegou como fazia todos os dias, com vontade de uma ducha urgente e qualquer sanduíche para devorar. “Um filme”, sugeriu, ele que sempre dormia na melhor parte. Era sempre assim. Mal se falavam.

Mas não resistiu e perguntou se iriam celebrar alguma data que, mais uma vez, esquecera. Ela respondeu que precisava comunicar-lhe uma decisão que tomara a partir de sua disposição em poupar tempo, para viver mais coisas boas, do que más. Ele riu, irônico, ao sentir aquele clima de fronteira, onde se tem intimidade mas sempre se está próximo ao estrangeiro. Diante da alternativa entre o lugar comum da acomodação, ou a possibilidade do novo – saboreou, como a muito não fazia, o prato que ela lhe servira. Um raro filé de peixe, regado a um mais raro ainda, molho de laranja. O paladar o enfeitiçou-se.  E a cerveja? Ok, uma taça de espumante também servia naquele momento diferenciado, exótico entre eles.

Ela quis falar. Mas estava relaxada, sentindo-se em outro lugar. Estranho, mas foi ele, sempre quieto e ausente que disse: “gostei desse teu cabelo. E teu rosto? Me parece mais coradinha... é a bebida”, percebeu, ao lembrar que ela jamais consumia álcool. E com a mão grande e pesada, conferiu a maciez daquele rosto, tão familiar que já virara um quadro antigo na parede de casa. Gostou tanto que um arrepio o empurrou a um raro beijo. Ela quis outra vez falar, fugir, mas as palavras eram prisioneiras daquela carne macia, que saciava uma fome muito mais urgente. Seria apenas carência? 


É claro que não. Tinha muito mais, trazia respostas para quem era só ansiedade e não sabia como perguntar. Sábado é só mais um dígito no calendário, pensou no embalo dos braços que embora fortes, não a forçaram a nada. E deixou de lado, pelo menos por mais alguns minutos, a contabilidade de uma despedida que, com certeza ainda não estava pronta. Entendia que às vezes, o que falta é o inesperado – um ritual – pois, onde tudo anda morno, sempre se pode atear algum fogo, antes que se esfrie de vez. 


* Canção do extinto grupo gaúcho Couro, Cordas & Cantos

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