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sábado, 24 de dezembro de 2011

O Natal que saiu do lixo


O que vale mesmo?

Ar de gente cansada. Falta de ar nas lojas, nas repartições, nos abraços apertados entre milhares de celebrações natalinas. Estou asfixiado por tanta ansiedade, tanta contabilidade. A televisão insiste com dicas para quitar dívidas ancestrais – limpar a ficha – e voltar a consumir. A engrenagem precisa continuar a girar. Domingo, voltando de (mais) uma destas festas de final de ano, cruzei por municípios entre os vales do Rio Pardo e Taquari e percebi lojas de portas abertas à espera de consumidores. Não vi muito movimento. Mas as pessoas, a grande maioria, acumula estresse e esgotamento. Li que os empresários já projetam que este será o segundo pior Natal em quatro anos. “Só perde para o de 2008, quando houve retração de 1,7% por causa da crise americana, apontam dados da Associação Comercial de São Paulo (ACSP),” ouvi na tevê. A crise mundial e as ameaças ao sistema econômico estão botando para correr Papais-Noéis. Não é só isso, ou melhor, não é por aí que se avalia a angústia da grande maioria.

Final de ano é tempo de balanço. E um dos piores balanços é o fatídico ajustar de contas que fazemos conosco. Metas esquecidas ou superadas depois de muito sacrifício. Ausência daqueles que não estarão conosco na ceia de Natal. Por doença, falecimento ou outras rupturas que sempre deixam marcas. Mas é um tempo de paz, de esperança. A contabilidade, o presente ideal, a fila imensa nas grandes lojas, nada disso é pior do que o júri malfeito de pecados.

Lembro que num destes natais do passado, eu andava atordoado por todos esses motivos e outros. Enfim, estava a me sentir um minúsculo verme perdido entre tanta música e decoração de gosto duvidoso. Eu estava lá – hora meio apagado, ora a acender no tranco – feito essas pequenas e irritantes lampadazinhas chinesas de Natal. Foi quando em uma das mais movimentadas ruas de Porto Alegre que percebi uma cena típica da cidade e da época. Pai e filho, classificadores de lixo, no entardecer do dia 23, antevéspera de Natal.

O menino segurava na mão esquerda um desses bonecos articulados. Um super-herói qualquer. Não dava para perceber a cor da capa. Apenas que estaria em boas condições – não fosse lhe faltar uma das pernas. Por mais que voasse, um herói daquele porte também dependia das pernas para pisar no chão firme. O pai, com a cara enfiada em um saco de lixo, revirava tudo, “Eu vi cair aqui”, disse ele. Lá pelas tantas, voltou com algo que parecia a perna do boneco. Foi ao carrinho, puxou uma caixa cheia de pregos e parafusos. Acho que eram centenas deles. Revirou até achar o que queria. Deitou o boneco na calçada e com uma faca pequenina – transformada em chave de fenda, ou bisturi – sei lá, recolocou a perna no super-herói. Mas não devolveu ao filho.

“Agora só vais brincar com ele no Natal. A tua irmã também vai ganhar um presente do Papai Noel.” Cético, afinal havia juntado o presente no lixo, o menino disse, convicto: “Isso não existe, pai.” Sem perder tempo, o homem indagou ao menino de onde tinha caído aquele brinquedo? E por que perdera um parafuso? Ora, havia sido jogado lá de cima, do trenó de Noel. E viera com tanta força que quase se quebrara todo. Caíra no lixo porque em casa não tinham chaminé, nem fogão a lenha. Colocou o brinquedo ao lado de outro, uma boneca de cabelos arrepiados que deveria preparar para a filha, talvez.

E percebi ali, que toda adversidade, tudo o que contraria a lógica ou nos tira o foco, se resolve com determinação. Está em cada um de nós e não se compra com cartões de crédito ou depende de paciência no comércio vil e interesseiro. O verdadeiro espírito natalino resiste à aspereza da vida, porque se alimenta das lições que conseguimos aprender entre decepções e conquistas durante um ano, ou toda uma existência. Então, paz para não nos faltar ar, fôlego, neste Natal!

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