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sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

Coragem, meu cão covarde

Coragem, vítima dos maus tratos

9 de fevereiro de 2012 às 15h25
“Perto daqui estão depositados
os despojos daquele que possuía
Beleza sem Vaidade,
Força sem Insolência, 
Coragem sem Ferocidade 
E todas as virtudes do Homem sem seus Vícios.” 
(Homenagem de Lord Byron a seu cão Boatswain)

Coragem era um cachorrinho sem linhagem, mas simpático. Chegou lá em casa, literalmente, de rabo entre as pernas, querendo amizade com Max, o pastor alemão que teoricamente deveria cuidar da casa. Descobri que tinha até um dono na vizinhança. Eu o mandava para casa, ele se escondia nas macegas e, lá pelas tantas, estava de volta. Meu velho cão sofria com uma artrite crônica. Coragem o obrigava a se movimentar. Juntos, azaravam as cadelinhas da vizinhança e no tempo restante, se ocupavam com coisas típicas dos cachorros, como latir para toda roda de automóvel que ousasse desafiá-los na rua.

Eu o apelidei de Coragem porque lembrava o cachorrinho do desenho do Cartoon Network, que morria de medo das aparições e fantasmas que assombravam a casa de seus donos – o mal-humorado Eustácio Bagge e sua esposa Muriel. O Coragem lá de casa também tinha seus fantasmas e assombrações. Lembro que para eu me aproximar e conquistar sua confiança, foi um verdadeiro exercício de paciência. Mesmo liberando ração, ele sempre me olhava com desconfiança. Era amigo do Max e ponto final.

Mais tarde, aprendi que ele só temia gente. Caso entrasse qualquer outro bicho lá em casa, fosse cavalo, vaca ou mesmo cães maiores, ele não se mixava. Rosnava com cara de poucos amigos, defendendo o espaço que adotara. Nessas horas fazia justiça ao apelido irônico e transformava-se em cãozinho muito valente. Um vizinho me alertou que Coragem sofria maus-tratos de seus verdadeiros donos e, com certeza, por isso optara pela vida na rua. E minha casa, que não tinha cerca,  era seu abrigo e refeitório, é claro.

Aos poucos aprendi a lidar com o Coragem. Ficamos amigos. Respeitávamos nossos limites e fobias. Quando ele queria alguma coisa, não latia, mas grunhia com sons estranhamente roucos que, juro por Deus, se assemelhavam a uma tentativa de conversa. E foi assim, ouvindo as lamúrias do Coragem que consegui lhe fazer um primeiro cafuné.

Desacostumado com qualquer tipo de carinho, o bicho não sabia o que fazer depois do afago. Nunca vi tantas caretas em um cão. Mais parecia um mico de circo. Coragem também ria! Exibia todos os dentes porque, acreditem, a vida sofrida, não lhe derrubava o ânimo. Logo após o carinho, saía a correr eufórico pelo pátio em ultra velocidade, enquanto chorava e uivava, surtado, em pura euforia. Somente após esse ritual- afago, correria e riso e uivos - comia sua ração. Essa era a nossa rotina diária.

Mas assim como acontece entre seres humanos, Coragem tinha lá seus traumas. E não deveriam ser poucos. Eu não conseguia lhe dar banho, por exemplo. Colocava coleiras, mas ele sempre as arrancava. Vacinação era um estresse. Torci um dedo – tropecei e caí – ao tentar lhe aplicar medicação. Por pouco, na confusão, não saí “vacinado” contra todo tipo de doenças de cachorro. Pet shop? Nem pensar. Ele simplesmente surtava. E assim, os fantasmas do passado acabaram por encurtar a vida do Coragem.

No início do verão, ele apareceu com carrapatos e uma bicheira nas costas. Tentei de tudo para lhe aplicar remédios. Os carrapatos tirei, mas as larvas que ficam entre o couro e carne, não tinha como lidar. Tentei atraí-lo com ração, cafuné, coleira reforçada. Ele sentia o cheiro da medicação, via o veterinário e corria alucinado mato a dentro. Depois de um tempo, não queria mais nem me ver. A ferida cada vez mais aberta nas costas. Era da rua, sabia onde esconder-se. Aparecia à noite, quando estávamos a dormir. Eu só percebia sua presença em função do cheiro e das marcas de sangue.

Sexta-feira passada Coragem morreu, na porta de casa, devorado pela bicheira. A violência de seus antigos donos, mais do que cicatrizes, havia lhe roubado a confiança. Coragem era um prisioneiro do sofrimento. Era algo como esses guris recolhidos em instituições de atendimento especial. Vivem acuados pela brutalidade. Não aprenderam a entrega incondicional, porque tem contra si, a memória trágica do abuso extremo. 

Sinto saudades do Coragem, o cachorrinho sem pedigree que me ensinou um pouco mais sobre a importância do respeito e amor a todos os seres vivos. Me consola pelo menos ter lhe oferecido um cantinho, com comida e cafunés que aproveitou com desproporcional alegria. Aliás, era confortador ver aquele bicho traumatizado em quase êxtase. Com certeza, ele está muito bem no céu onde, com certeza, não lhe faltará o carinho que encontrou tão tardiamente. 

Um comentário:

Clovis Alberto disse...

Vc só se equivocou numa afirmação...o céu deles é o mesmo nosso meu irmão...abraço