O que vale mesmo? |
Final de ano é tempo de balanço. E um dos piores balanços é
o fatídico ajustar de contas que fazemos conosco. Metas esquecidas ou superadas
depois de muito sacrifício. Ausência daqueles que não estarão conosco na ceia
de Natal. Por doença, falecimento ou outras rupturas que sempre deixam marcas.
Mas é um tempo de paz, de esperança. A contabilidade, o presente ideal, a fila
imensa nas grandes lojas, nada disso é pior do que o júri malfeito de pecados.
Lembro que num destes natais do passado, eu andava atordoado
por todos esses motivos e outros. Enfim, estava a me sentir um minúsculo verme
perdido entre tanta música e decoração de gosto duvidoso. Eu estava lá – hora
meio apagado, ora a acender no tranco – feito essas pequenas e irritantes
lampadazinhas chinesas de Natal. Foi quando em uma das mais movimentadas ruas
de Porto Alegre que percebi uma cena típica da cidade e da época. Pai e filho,
classificadores de lixo, no entardecer do dia 23, antevéspera de Natal.
O menino segurava na mão esquerda um desses bonecos
articulados. Um super-herói qualquer. Não dava para perceber a cor da capa.
Apenas que estaria em boas condições – não fosse lhe faltar uma das pernas. Por
mais que voasse, um herói daquele porte também dependia das pernas para pisar
no chão firme. O pai, com a cara enfiada em um saco de lixo, revirava tudo, “Eu
vi cair aqui”, disse ele. Lá pelas tantas, voltou com algo que parecia a perna
do boneco. Foi ao carrinho, puxou uma caixa cheia de pregos e parafusos. Acho
que eram centenas deles. Revirou até achar o que queria. Deitou o boneco na
calçada e com uma faca pequenina – transformada em chave de fenda, ou bisturi –
sei lá, recolocou a perna no super-herói. Mas não devolveu ao filho.
“Agora só vais brincar com ele no Natal. A tua irmã também
vai ganhar um presente do Papai Noel.” Cético, afinal havia juntado o presente
no lixo, o menino disse, convicto: “Isso não existe, pai.” Sem perder tempo, o
homem indagou ao menino de onde tinha caído aquele brinquedo? E por que perdera
um parafuso? Ora, havia sido jogado lá de cima, do trenó de Noel. E viera com
tanta força que quase se quebrara todo. Caíra no lixo porque em casa não tinham
chaminé, nem fogão a lenha. Colocou o brinquedo ao lado de outro, uma boneca de
cabelos arrepiados que deveria preparar para a filha, talvez.
E percebi ali, que toda adversidade, tudo o que contraria a
lógica ou nos tira o foco, se resolve com determinação. Está em cada um de nós
e não se compra com cartões de crédito ou depende de paciência no comércio vil
e interesseiro. O verdadeiro espírito natalino resiste à aspereza da vida,
porque se alimenta das lições que conseguimos aprender entre decepções e
conquistas durante um ano, ou toda uma existência. Então, paz para não nos faltar
ar, fôlego, neste Natal!