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sexta-feira, 30 de março de 2012

O marceneiro e a executiva

Os olhos estavam cansados daquela paisagem. Lá no fundo, bem ao fundo, alguém acenava. Uma mão solta no ar, quase sem corpo, desfocada contra a luz do sol. A semana começara difícil. Pensou em ligar para o marido. Três dias distante. Três dias sem trocar uma idéia, sem carinho. Quem a observasse naquele momento pensaria que rezava, em voz baixa. Olhar sério, compenetrado. Mas era a luz do sol que interferia no horizonte e reduzia a definição da vista já cansada. Sinal da idade e da teimosia em não consultar um oftalmologista. Virou-se de costas para a luz para retomar a caminhada. Era seu melhor momento nas constantes viagens à trabalho que lhe cansavam enjôo.

Pior, passaria o final de semana sozinha. Alguns contratos precisavam ser revisados e os clientes insistiram para uma reunião no sábado ao meio-dia. “Esses caras não tem família?” Mas ela ainda era a renda mais alta da família. Em casa, os filhos já adultos estavam independentes, mas o esposo remava contra a maré imposta por rendimentos baixos. Pequeno empresário no Brasil é escravo de muitos patrões e vitima da sede por impostos dos governos e das instabilidades de mercado. Sozinha, às vezes desconfiava que ele – talvez cansado dessa diferença – buscasse casos extraconjugais para “sentir-se mais macho, já que no salário perdia”, sem dar-se conta do preconceito que alimentava.

Seria fácil. Ele sempre em viagens de negócios ele, em função da atividade que exercia, atendia uma mulherada imensa. Era marceneiro, e dos bons! Produzia peças para artesanato. Mas não, não cometeria tal desatino. Lembrou a italiana sem graça que encomendara 30 coelhinhos para uma feira de Páscoa, em Canoas. “Coisa simples”, dissera o marido, não fosse a grande quantidade de outras encomendas, para tantas outras clientes. E a italiana, um coroa bonitona nos seus quase 50, era a favorita dele. Vá lá, ela consumia muito. Mas detestava quando chegava com sotaque forte e gestos largos para elogiar, repetidas vezes, as virtudes do esposo. “Ai tem...” pensava, embora garantisse ser apenas uma boa cliente. Nada mais.

Longe de casa, em Florianópolis, em um bom hotel, cercada de executivos de grandes empresas, bem resolvidos financeiramente e cheios de disposição para uma aventura instantânea, e ainda preocupava-se como marido, que vivia situação muito diferente. O pobre deveria estar, naquele exato momento no atelier, trabalhando, bem escondido em uma rua simples, sem charme, sem paisagem bonita, na distante zona norte de Porto Alegre. “Nem barba ele faz, quando não estou. Mas fica muito charmoso,” pensou, ao lembrar os pelos eriçados a lhe arrepia a pele sensível.

Quem sabe não estava na hora dela mesma acrescentar emoção a rotina de sua vida? Aquele diretor da empresa concorrente lhe sugerira um vinho. Sem compromisso. Quebrar o gelo, trocar idéias de trabalho. “Sei...” Em casa, o maridão entalhando coelhinhos e ela, solitária, carente, insatisfeita. Arrependeu-se na hora. O sol era só uma mancha no céu bem limpo e aquela visão distante – a da mão que acenava – ganhava forma, embora ainda imprecisa.

“Pára de pensar bobagens, guria”, disse para si mesma. Ligou para o marido. Conferir é prevenir, sentenciou. Chamou, chamou. E nada! Muitos minutos depois, um funcionário atendeu. O marido fora entregar encomendas. Uma delas para a tal artesã italiana.

O sangue ferveu de tal maneira que a paisagem paradisíaca da beira-mar ganhou os tons vermelha do ódio que a cegou ainda mais. Então era isso: uma entrega especial. E para ela, nem um telefonema de boa noite? Homens! “E eu boba, insisti para ele fazer aquela dieta. Agora perdeu uns quilinhos e já se sente um galã!” Ao mesmo tempo, a imagem desfocada que antes parecia lhe acenar, ganhava forma. Vinha em sua direção. Era um homem. E se fosse bonito, adeus, boa moça!

Quando a imagem ganhou definição, a poucos metros de seus incrédulos olhos, um novo choque: com um sorriso imenso e familiar, camiseta, jeans muito surrado e a barba – aquela barba por fazer – ali estava ele. Não o provável amante, mas o marido, seu marceneiro a lhe fazer uma surpresa. A primeira em tantos anos e com certeza, vinda na hora certa. 

Depois do abraço, do beijo cheio de culpa e saudade, soube que ele decidira por uma folga “Vim dar uma incerta”, brincou.  Só não contou que a passagem fora adquirida graças ao empréstimo de uma cliente. Isso mesmo, a italiana. Ela não entenderia.    

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