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Será que partir é sempre necessário? |
Todos os dias ela contabilizava os minutos, os segundos,
como quem administra uma poupança de milhões em ouro ou dinheiro. Era uma conta
onde a valia era o quanto a menor lhe restava. Queria apenas a liberdade de
abrir a porta e entrar em um novo mundo, uma vida renovada. Ar! Queria ar! Sem
humores instáveis, dúvidas, ânsias e rádio patrulhas, decisões sem pé, nem cabeça. Paz! Queria paz! Sábados
eram o inferno virado em compras, faxina em casa e uma sensação de que à noite
desabaria defronte a tevê, sem muito o que escolher. Tudo isso seria aceitável,
não fosse ainda pressão de dividir problemas e pouco prazer com alguém que já
lhe inspirara tanta satisfação, tanta energia e bom humor.
Era uma conta cheia de incertezas, juros a pagar, excessos
engavetados ou congelados, em um frost free de indiferença. Pior, muito pior,
era a certeza de ao dividir o pouco, pagava o dobro em reflexões sem nexo. Ou
com todo nexo. E foi assim, nesse pinga–pinga
típico de quem não sabe bem o que mira, que jurou: “hoje eu decido: boto
tudo em pratos limpos.” Os leitores já perceberam que a coisa gira em torno de
uma relação desgastada. Um romance sem chama para acender qualquer tipo de
salvação. Acomodado.
Para tornar tudo mais civilizado, saiu do trabalho e foi à
estética. Coisa rara. Mudou o corte de cabelo, fez unhas, massagem. Ouviu
fofocas, confidenciou que estava decidida a mudar de vida. Por que mulheres
confidenciam essas coisas. Chega de amassar o pão e alimentar outras fantasias.
Gostou da metáfora! Saiu lindinha, embora aquela barriguinha. Preparou uma
janta leve, arrumou a mesa com a melhor louça. Seria um encontro de contas, ou
melhor, uma aceno de mão, um tchau civilizado. E serviu-se de espumante. Ele
chegou como fazia todos os dias, com vontade de uma ducha urgente e qualquer
sanduíche para devorar. “Um filme”, sugeriu, ele que sempre dormia na melhor
parte. Era sempre assim. Mal se falavam.
Mas não resistiu e perguntou se iriam celebrar alguma data
que, mais uma vez, esquecera. Ela respondeu que precisava comunicar-lhe uma
decisão que tomara a partir de sua disposição em poupar tempo, para viver mais
coisas boas, do que más. Ele riu, irônico, ao sentir aquele clima de fronteira,
onde se tem intimidade mas sempre se está próximo ao estrangeiro. Diante da
alternativa entre o lugar comum da acomodação, ou a possibilidade do novo –
saboreou, como a muito não fazia, o prato que ela lhe servira. Um raro filé de
peixe, regado a um mais raro ainda, molho de laranja. O paladar o enfeitiçou-se.
E a cerveja? Ok, uma taça de espumante
também servia naquele momento diferenciado, exótico entre eles.
Ela quis falar. Mas estava relaxada, sentindo-se em outro
lugar. Estranho, mas foi ele, sempre quieto e ausente que disse:
“gostei desse teu cabelo. E teu rosto? Me parece mais coradinha... é a bebida”,
percebeu, ao lembrar que ela jamais consumia álcool. E com a mão grande
e pesada, conferiu a maciez daquele rosto, tão familiar que já virara um quadro antigo na parede de casa. Gostou tanto que um arrepio o
empurrou a um raro beijo. Ela quis outra vez falar, fugir, mas as palavras eram
prisioneiras daquela carne macia, que saciava uma fome muito mais urgente. Seria apenas carência?
É claro que não. Tinha muito mais, trazia respostas para
quem era só ansiedade e não sabia como perguntar. Sábado é só mais um dígito no
calendário, pensou no embalo dos braços que embora fortes, não a forçaram a
nada. E deixou de lado, pelo menos por mais alguns minutos, a contabilidade de
uma despedida que, com certeza ainda não estava pronta. Entendia que às vezes,
o que falta é o inesperado – um ritual – pois, onde tudo anda morno, sempre
se pode atear algum fogo, antes que se esfrie de vez.
* Canção do extinto grupo gaúcho Couro, Cordas & Cantos